sábado, 21 de junho de 2014

22/06/14                                            RESGATE

Já em Salvador, abro a porta do meu consultório com um chaveiro de metal que tem, de um lado, uma Nossa Senhora Aparecida esculpida. De outro lado, também esculpido, o nome "Myriam". O nome de minha mãe, que ouço dizer que significa "Maria" em hebraico, o nome de Nossa Senhora.

Nunca tive um chaveiro amparando as minhas chaves do consultório. Quanto mais trazendo um tema religioso...o que a gente não faz por amor? Lá em Maceió minha mãe e eu, todos os dias às 18:00 h assistimos à missa na televisão rezada na Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Quem diria? O que a gente não faz por amor?

Como já disse, os lapsos de memória não acometem minha mãe quando se trata dos assuntos de Deus. Todos os dias, meia hora antes da missa, ela consultava o calendário, pegava a Bíblia e assinalava os textos para serem lidos. Para fazê-lo, não aceitava nem precisava de ajuda. Cantava os cânticos de cor e assim também proferia todas as falas do ritual litúrgico. Praticamente incapacitada de se locomover como se encontra, não sei onde achava forças para se levantar e rezar de pé, quando essa era a exigência do ritual.

Cheguei no aeroporto de Maceió sem saber o que iria encontrar, sem saber como seria recebida. Lá estavam me esperando Lula, meu irmão, e Lindaura, minha cunhada. Depois de um percurso não muito longo, onde conversamos sobre Dilma e o PT, chegamos à bonita casa num condomínio fechado. Um lindo e amplo jardim, piscina e canil vistos superficialmente, tamanha era a ansiedade de adentrar o quarto de minha mãe e abraçá-la. Já no aeroporto, fiquei tocada com a paciência que eles tiveram de me esperar no desembarque. Mais tocada ainda fiquei ao saber que minha mãe atrasou a hora do seu almoço para me esperar. Naqueles quase cinco dias que passaria em Maceió, eu não sabia que inúmeras seriam as horas em que me sentiria comovidamente tocada por gestos e palavras de todos que estavam ali.

Abracei minha mãe com o cuidado de não lhe machucar as costas. Chorei copiosamente quando consumou-se o tão esperado abraço. Notei que ela emagreceu muito e que sua pele parecia papel celofane deixando entrever as suas veias, numa transparência impudica. A primeira coisa que ela me disse foi que Lula e Lindaura, embora fosse domingo, pediram à empregada para trabalhar para que eu fosse bem recebida. Minha sobrinha Luciana, muito meiga e doce desceu com seu filhinho Iuri para me cumprimentar. Iuri é uma criança muito inteligente, ativa e travessa. Logo, logo desceria Cauã, seu irmão mais velho, um quase adolescente muito gentil e educado.

Pronto. Hora de almoço com atraso e estávamos todos à mesa. Lula e Lindaura têm uma característica que eu muito prezo nas minhas relações. Principalmente Lindaura que é extremamente dadivosa e receptiva, na verdade eles são um casal que prima por saber lhe deixar à vontade sem imposições e controles. As coisas fluem. Parece que eles sabiam exatamente que o grande motivo que me levara lá, era ver e saber de minha mãe. E me deram liberdade para disso usufruir.

Comemos animados pelas divertidas "pintanças" de Iuri. Cauã, como um rapazinho bem comportado, não se "avexa" com as insistentes investidas do irmão menor para ser o centro das atenções. Com mais vagar, olho para a casa cuidadosamente decorada por Lindaura. Toda a área externa está enfeitada com bandeirolas de São João. A marca do meu pai no gosto de Lula por proporcionar uma bonita festa junina às crianças. A marca de meu pai nas tiradas bem humoradas de meu irmão. A comida é farta e tem traços do regionalismo alagoano. Fixo minha atenção na minha mãe e uma ternura desmedida me toma o peito. Ela parece minúscula, no seu demorado mastigar. Muito demorado.

Depois de me instalar num quarto confortabilíssimo no andar de cima da casa, desço para os aposentos de minha mãe e ela me mostra condoída o machucado pela queda nas costas. Mostra a pomada com a qual Lula lhe massageia todas as noites. Mostra os machucados que tem nos dedos dos pés e diz do trabalho que tem para fazer os curativos. Me parece muito cansada, mas mais lúcida. Seu quarto está cheio de imagens de santos, tem uma fotografia do Papa Francisco, tem fotografias de nós todos e está sobrecarregado de caixas guardando suas recordações do passado, seus remédios que são muitos e muita tranqueira que teimosa, faz questão de preservar. Diz que sendo carmelita tem o quarto como sua cela. Tudo isso me deixa com um nó na garganta.

O dia do aniversário de minha mãe foi uma festa comovente. Um lindo bolo, doces, salgados, muitos presentes, tudo carinhosamente providenciado por Lindaura e Lula. Minha mãe faz questão de registrar num caderno todos que lhe telefonaram. Aí a memória atrapalha muito e ela fica impaciente. Como não consegue mais manipular o computador, olho no seu Facebook todos os que lhe deixaram mensagens. No meio caminho da empreitada já está impaciente no seu esforço de anotar. Noto que precisa cumprir uma rigorosa rotina. Noto que à hora da missa é quando fica mais entregue, transcendendo os cansativos rituais do dia a dia dos quais quer que Deus a libere, o que não cansa de dizer repetidamente.

A chegada de Livinha, minha colega de aniversário, sobrinha querida, acrescenta ternura e aconchego ao convívio familiar. Além da data de aniversário, temos a profissão em comum e creio que somos também parecidas numa certa tendência à comoção. Iasmin, sua filhinha, minha sobrinha neta é um encanto de meiguice e sociabilidade. A casa fica multifacetada de traços de cultura de quatro gerações. De minha mãe a seus bisnetos. Lula, muito motivado para assistir aos jogos da Copa, não negligencia contudo seus cuidados atenciosos de filho, marido, pai, avô e irmão. Um dia, acordou quase de madrugada para ir a um posto de saúde buscar um remédio para nossa mãe.

Meu último dia de permanência em Maceió, dia do meu aniversário e de Lívia, me fez compreender quão importante para mim e para todos foi essa minha viagem. Viagem de resgate. Viagem de poder ressignificar, estreitando laços, viagem de agradecer a Lula e a Lindaura por terem podido fazer por minha mãe o que as suas filhas mulheres não poderiam ter feito, mesmo que quisessem.

 O aniversário duplo foi comemorado com tudo que teve direito. Minha querida irmã Sandra ainda que em Aracaju, não deixou de comparecer com seus telefonemas amorosos e presentes que enviou. É ela quem cuida de minha mãe quando Lula e Lindaura precisam viajar. Minha mãe amanheceu cantando "Parabéns pra você". Muito me comoveu ver todos torcendo pela Colômbia em solidariedade a meu filho Rafael. Nesse dia minha mãe estava muito lúcida. Quem esteve todo o tempo quase ignorando a existência da Copa do mundo, já próximo da minha hora de embarcar para Salvador, sentou-se comigo no seu quarto e sem se dar conta de que eu estava chorando copiosamente, torceu animadamente para a Colômbia, acompanhando cada lance de gol. De vez em quando chamava a Colômbia de Uruguai , mas em nenhum momento perdeu a consciência que aquele era o time do meu filho. Obrigada, minha mãe!!! Obrigada, Lula, Lindaura, Luciana, Lívia!!!

Obrigada, Marcia Gomes!!! Por acreditar que reinventar é possível. Por se permitir escrever uma crônica piegas, cheia de lugares comuns, a título de agradecer a si mesma. Agradecer por não se atemorizar diante dos fantasmas do passado. Agradecer por estar feliz e no seu aniversário receber do seu irmão o convite pra visitar o seu "cafofo". O "cafofo" é o espaço que Lula construiu para ele  usufruir seu tempo de aposentado. Nele ele instalou o ampliador de fotografias deixado por meu pai junto com outras coisas do estúdio fotográfico. Nele ele instalou um aeromodelo e sua oficina de marceneiro. Nosso pai era aeromodelista, fotógrafo e marceneiro, por hobby. 

Maceió. Estávamos todos lá, incluindo a memória de meu pai. Quatro gerações. Ciúmes, culpas, mal entendidos, hostilidades, distância, negação. Proximidade, ternura, compaixão, perdão, cumplicidade, identificação. Amor, muito amor. Resgate. 
                                           Marcia Gomes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário