sábado, 21 de junho de 2014

15/06/14                                  O  ABRAÇO  ESPERADO

Véspera. Espera. Estou em compasso de espera. Muitas emoções. Clima de Copa do mundo. A vitória do Brasil sobre a Croácia. A vitória da Colômbia sobre a Grécia. Eu, satisfeita em solidariedade a meu filho adotivo colombiano. Eu, estarrecida de repúdio àqueles que agrediram com palavrões a Presidente Dilma. Aqui não se trata de preferência por este ou aquele partido político. O que me choca é a vergonha pela qual passa uma nação inteira. Ouvir a sua presidente, uma senhora, ser agredida covardemente por palavras de baixo calão. Se fosse uma palavra de ordem política, um desafio ideológico, dava para aceitar. Mas um xingamento?

Véspera. Espera. Felizmente o meu amigo Carlos Machado anuncia a chegada do dia 15 de junho com um cartão poético em homenagem ao escritor Antônio Brasileiro que faz 70 anos. Felizmente existe a poesia como resposta ao palavreado de baixo calão: "A verdade é uma só: são muitas. E estamos todos certos. E sem rumo." (Antônio Brasileiro).

Véspera. Espera. Espero a hora de embarcar para uma viagem de encontro. Alguém cujas verdades são muitas e oscilam de um momento para outro, conforme o ir e vir da memória. Memória que, como onda, vem, mas daí a pouco arrefece em rasa espuma. Alguém que se pudesse ainda tomar conhecimento de que uma senhora foi xingada em um estádio de futebol, rezaria um rosário inteiro pedindo clemência porque estamos todos certos. E sem rumo. Falta pouco, mas é muito, para eu encontrar alguém que não abraço pessoalmente desde o carnaval do ano passado.

Me toma um sobressalto. A quem vou encontrar? Uma ternura pungente me aquece o peito. Quantos abraços nos restam? Hoje, enquanto aguardo a hora de embarcar, falei com ela ao telefone. Perguntou se  é sábado ou domingo. Pediu-me que ao chegar a abrace com vagar porque tem as costas machucadas por uma queda. Não a toco desde o carnaval do ano passado. Quanta coisa mudou de lá para cá!  Agora ela estranha quando lhe pergunto se assistiu ao jogo do Brasil. Não registra que estamos em plena Copa do mundo e nada mais quer senão assistir à missa na televisão.

Amanhã, dia 16, completará oitenta e um anos. Oitenta e um anos de vida nem sempre fácil, a maior parte do tempo na árdua labuta de criar filhos sem um parceiro para compartilhar. Com sua vozinha frágil e arfante me disse ter desistido de escrever a história da própria vida, tão dolorosas eram as passagens. Tem falado muito na hora que está para chegar.  A hora, segundo ela, de estar face a face com Deus. Fala disso recorrentemente quase como se estivesse pedindo autorização, pedindo para ser liberada das amarras que lhe prendem aqui. Isso me oprime o peito. Não estou preparada. A gente nunca está.

Mora numa casa muito confortável num condomínio em Maceió na companhia de seu filho preferido. Mora longe de mim e perdi a conta da última vez que teve saúde para vir a Salvador. A fé em Deus é a onda que nunca se arrefece em rasa espuma. A sua memória de Deus nunca falha. Há coisa de quatro anos, ainda lúcida, lúcida, ordenou-se carmelita. Noto que a sua crise de asma se atenua quando lhe digo que fui à missa. Quando lhe contei que tenho um amigo que escreve poemas de inspiração bíblica, ela quase sorriu. Quase.

Nesses últimos anos muito tenho ressignificado da nossa relação. É preciso fazer 60 anos para só aí se deixar apanhar inteira pela compaixão? Só aí compreender que vale a pena dizer que fui à missa, dizer qualquer coisa, uma coisa qualquer para lhe arrancar um quase sorriso? Véspera. Espera. A hora do abraço cauteloso para não machucar. A hora de entregar os presentes enviados pela sobrinha generosa. Presentes e um cartãozinho provavelmente com palavras ternas. Quando ela soube que esta sobrinha querida vinha aqui para deixar comigo os presentes, comentou :"Coitada de Elyana, tomando trabalho logo comigo?".

Véspera. Espera. A Copa do mundo pode esperar. De repente até ao repúdio ao xingamento a Dilma quero dar uma trégua. Estou agora somente por conta do anseio do abraço cauteloso. Cauteloso o suficiente para desmanchar em rasa espuma tantos anos de mal entendidos, de dores mútuas, de palavras ditas em excesso, de palavras nunca ditas. Agora que se aproxima a hora de abraçar minha mãe, quero parar o tempo. Quero não pensar em quantos abraços nos restam.
                                                                Marcia Gomes.

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