sábado, 30 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....." e.....Fênix.‏



  • 01/12/13                                     FÊNIX

    Maçãs e peras se depositam silentes sobre uma bandeja, como natureza morta. Vermelho e amarelo impressionam as retinas e a mistura de aromas me dá notícias da vida. Entretanto mantenho maçãs e peras à distância. Acabo de falar ao telefone com a minha mãe. Fico condoída com a sua vozinha frágil, ressentida que está ela com uma provisória mudança geográfica à qual vai se adaptando com dificuldade.

    Quinta-feira. Trovoada no céu. Chove torrencialmente. Quinta-feira, dia em que não vou ao trabalho. Quinta-feira, dia de folga. Manhã de calor opressivo estrangulado pela umidade da chuva. Ou é a umidade da chuva que fica estrangulada pelo calor opressivo da manhã? Delicada questão metafísica.

    Questão metafísica sem qualquer delicadeza é a relação da boa poesia com o ambiente acadêmico e seus "cacoetes". Parece não haver espaço para bons poetas na academia. Questão metafísica sem qualquer delicadeza é a relação da psicanálise rigorosa com o ambiente acadêmico e seus "cacoetes". Parece não haver lugar para uma psicanálise rigorosa na academia. Desapontamento não surpreendente. Um projeto abortado de um trabalho buscando confluência entre literatura e psicanálise. Eu, é claro, escolho o bom poeta e o rigor da psicanálise e mando os acadêmicos plantar batatas. Então me resta uma quinta-feira para exercer pretensões ociosas, já que o desapontamento não surpreendente me cai como um doloroso alívio.

    Por que não vou ao cinema? Mas o cinema é tão longe! A poucos metros daqui. É que o diabo cutuca com a vara curta da inércia. Essa vida é um "despautério". Não sei se existe essa palavra, quanto mais o que significa. Às vezes teimo em não visitar os dicionários para gozar do anônimo efeito sonoro das palavras. "Despautério" ecoa consonante com uma academia como uma repartição pública cheia de "cacoetes". Essas coisas parecem não fazer sentido. Portanto a vida é um "despautério".

    É um meandro rosa tímido. Um lusco-fusco de solidão. Queria ser grandiosa. Dizer o mundo em palavras. Dizer o quê, se é tão árduo o exercício da palavra? Dizer o quê, diante do inexprimível? Dizer que mundo, se fora a página de cultura, nem leio jornal?

    Queria dar uma festa dentro de um transatlântico. Que festa, se não gosto de festas? O transatlântico seria o melhor significante para uma defesa maníaca. Jamais entrei num navio. Sabe mesmo o que eu queria? Que o Príncipe Encantado viesse e batesse à minha porta. Ao me ver toda roliça, celulitosa, ele já virara sapo. Eu lhe jogaria um punhado de sal e ficaria morgando a minha preguiça em letras neste computador.

    Mas ano que vem, prometo, vou fazer uma dieta, arrumar a casa, se ganhar na loteria. Se ganhar na loteria quer dizer "nada disso farei" porque me sinto tão só! Por que me sinto tão só quando estou acompanhada e me sinto desacompanhada quando o que quero é ficar só?

    É o meandro rosa tímido. Nem branco nem escarlate. Já se viu coisa pior do que uma xícara de chá que amornou além da conta em cima da pedra fria porque o dono não foi buscar? Sou eu. Não fui me buscar enquanto estava quente, perfumada, olorosa.

    Com que cara oferecer uma xícara de chá que se sabe, passou do ponto? Melhor levar o chá para fazer companhia ao sapo. A preguiça é tanta, tão grandes o tédio e a náusea, que sequer me animo a jogar chá e sapo no vasilhame de lixo. Ave Maria, leitor, que texto mais baixo astral! Tudo isso por conta de uma instituição que parece não ter o estatuto da LETRA? Qual o quê?

    Olho para a maçã silente depositada na bandeja. Aspiro seu aroma, deixo que o vermelho impressione as retinas. Estendo a mão e levo a fruta à boca. Mordo. Seu sumo doce e suave escorre reanimando as papilas gustativas. Um imenso prazer de vida recai morno na mucosa do estômago. Alegria, beatitude. Como Fênix, renascida das cinzas, vejo um senhor de cabelos brancos como os meus ao meu lado. Ofereço a maçã a ele. Saboreamos juntos, cúmplices. Vejo bem. Não é um príncipe, nem tem cavalo. É o meu parceiro amoroso. Amor na minha vida.
                                                                                                  Bom domingo a todos.
                                                                                                             Marcia Gomes.
                                                                                            

    domingo, 24 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e....De um outro lugar.‏



  • 24/11/13                            DE  UM  OUTRO  LUGAR

    Fora de casa. Escrevo de um outro lugar. Uma sala de espera. Meu consultório. Aguardo a hora marcada para uma reunião de estudo de Lacan. Então visito a minha sala de espera. Sento no sofá. Contemplo a mulher pendurada na parede. A mulher pendurada na parede tem olhos vazados. Olho para ela da perspectiva de quem me aguarda. Nesta sala, de vez em quando alguém me aguarda. Aguarda e olha para a mulher de olhos vazados. Aguarda o que? Aguarda olhando para a mulher pintada por Modigliani. A mulher cuja cabeça inclinada mal se sustenta num pescoço longuíssimo. Mal se sustenta. Tem um rosto comprido. Na blusa uma gravata também comprida. Tudo nesse quadro é longilíneo. Quem aqui me aguarda, aguarda o que?  Tudo nesse quadro é de um abandono melancólico. Os cabelos da mulher querendo extrapolar os limites da tela. A mulher é triste. Definitivamente. Quem aqui me espera é triste? A mulher tem olhos vazados e olha para o nada. Quem aqui me espera olha para o nada? Quem espera confia em algo mais que o nada para olhar? Ruídos chegam do corredor. Pessoas numa outra sala de espera. Conversas triviais. Quem aqui me espera contempla a melancolia da mulher pintada por Modigliani?  Melancolia tão funda que parece sair da moldura. Conversas triviais na sala ao lado. O episódio "Mensalão". Trivial?  O menino diabético que foi assassinado pelo padrasto. Trivial? A mulher está melancólica e quer sair da moldura. Será sua dor, trivial? Dor de amor? Antes que adivinhe a dor estampada nos olhos vazados da mulher, resolvo abandoná-la. Quem aqui me aguarda especula sobre a dor da mulher?

    Resolvo abandoná-la e entro na sala de atendimento. Abro a cortina. O sol exuberante entra. Colhe de surpresa a planta depositada sobre o chão. Quem eu recebo nesta sala vê a luz do sol? Deito no divã. Vejo a árvore imensa do lado de fora. Galhos verdejantes acenam para a janela. Quem eu recebo nesta sala vê uma árvore imensa com seus galhos verdejantes? É uma árvore frondosa. Raízes bem fincadas e antigas. A luz incide diferentemente produzindo diferentes matizes de verde. Quem eu recebo nesta sala enxerga diferentes matizes de verde? Um passarinho se embalança num galho da árvore. Conforme a velocidade do vento o aceno dos galhos torna-se mais ou menos vigoroso. Quem eu recebo nesta sala percebe a oscilação no aceno dos galhos? O que vislumbra quem eu recebo nesta sala?

    Quem vai saber a razão de uma mulher de Modigliani na sala de espera? Quem vai saber a razão de um divã defronte de uma árvore frondosa e verdejante?  Como saber quando abrir a cortina? Chegou a hora da reunião de estudo de Lacan.
                                                                                                         Bom domingo,
                                                                                                                 Marcia Gomes. 

    sábado, 16 de novembro de 2013



  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e....Lió.‏



  • 17/11/13                              LIÓ

    Era franzina. Quase uma folha ao vento. Idosa. E antiga na casa. Uma espécie de agregada. Vinha do Engenho Velho de Brotas para o bairro de Nazaré costurar para seu Zacarias Germano Gomes e toda sua família. Vinha costurar e dormia uma noite, duas, quando viu já estava morando lá.

    Pelos meus cálculos, deve ter se aproximado da família por volta de 1930, quando meu pai estava com um ano de idade. Leonídia, nessa época, já era uma senhora contando em torno de setenta anos. Acompanhou o crescimento de meu pai e de meus tios do segundo casal, provavelmente fazendo contraponto ao alheamento taciturno de Dona Santinha, a da tribo.

    Não estaria na presença de Leonídia na casa, a resposta para a indagação se meu pai e seus irmãos teriam podido ter uma infância lúdica e afetuosa? Sem dúvida ela foi uma espécie de mãe postiça que cuidou daquelas crianças com amor e dedicação. Na verdade, pela sua idade, nem mãe. Avó.

    Então com seus óculos de aros redondos, vestidos sempre de mangas compridas e golas altas, cabelos grisalhos e longos amarrados num coque, altiva e magra como uma vara de pescar, Lió -- assim era chamada -- testemunhava continente a dinâmica daquela família grande e um tanto desordenada que acolhia numa mesma casa algumas gerações. Testemunha muitas vezes sentada à máquina de costura.

    Embora já uma avó postiça, ninguém a chamava de Dona, Senhora, nada dessas coisas. Pra todos era simplesmente Lió. Creio que até tratada com uma certa irreverência por parte de meu pai que gostava de perturbá-la com algumas anedotas indecentes e mexendo jocosamente com sua solteirice. Simplesmente Lió.

    Pois foi esse nome, de uma anciã beirando os cem anos, o primeiro que pronunciei nos meus balbucios. Isso está registrado por meus pais no meu álbum de bebê que guardo até hoje. Assim como lá está também registrada a história da barata que conto já, já.

    Quando nasci, ainda que muito idosa, Lió era forte, saudável e lúcida. Uma figura de apego e de referência fundamental na minha vida. Há milhares de fotografias, ela me carregando no colo. Era minha madrinha e me cercava de mimos. Eu usufruía, quase com exclusividade, de seus paparicos. Nas fotos eu apareço sempre com vestidinhos singelos cheios de laços e bordados confeccionados por ela com o maior esmero. Lió se ocupava da máquina de costura e da sua pequena afilhada.

    Tantos paparicos e a vontade determinada de não me contrariar, que Lió permitiu que eu chupasse uma barata. Eu era de meses. Engatinhando pela casa encontrei o nojento inseto e o coloquei na boca. Meus pais, felizmente, surpreenderam a cena e quase morreram de tanto brigar com Lió, por tamanha e imprudente falta de juízo. Ela apenas respondeu que não achava de bom alvitre me desapontar arrancando a barata de minha boca. Lúcida, hein?

    Lió era hipertensa. Portanto cozinhava sua comida em separado, sem sal. Sua, não. Nossa comida. Porque se meus pais bobeassem, era com aquilo que eu era alimentada. E comia e gostava. Como não gostar do que me oferecia aquela madrinha tão terna, amorosa? Meus pais que se resolvessem com ela. Eu estava muito feliz com seus mimos.

    Eu sempre fui muito sensível. Deve ter sido muito sofrida a minha separação de Lió quando a deixamos na casa de Nazaré e mudamos para Taperoá. Não tenho registro desta dor, que certamente houve, talvez atenuada com as minhas vindas a Salvador para fazer os óculos.

    Mas com aquela anciã que me iniciou nos ritos de celebração da vida, mesmo à custa de quase engolir uma barata, tive uma precoce, doída, assustadora e primeira experiência com a morte.

    Nós já morávamos em Ibirataia, eu com uns sete pra oito anos, e meu pai me chamou para uma conversa séria. Não me poupou. Me disse que Lió havia voltado para a casa de seus familiares no Engenho Velho de Brotas porque estava muito doente. E disse mais. Talvez com os recursos discursivos com que se argumenta com uma criança, meu pai me deixou ciente que minha madrinha iria morrer em breve.

    Dessa dor eu guardo registro. Entramos, eu e meu pai, numa casa muito humilde no Engenho Velho de Brotas. Havia pessoas ao redor. Primeira vez que fiz contato com pessoas de Lió que não fossem da minha família. Ela, esquálida, praticamente só cabelos, deitada numa cama, me reconheceu. Compenetrada na minha dor, me despedi de minha madrinha.

    Ainda esta semana, um amigo poeta muito sensível, me mandou de Jorge Luis Borges : "Sólo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos".
                                                                              Bom domingo a todos,
                                                                                                  Marcia Gomes.

    sábado, 9 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e......Estilhaços.



  • 10/11/13                                  ESTILHAÇOS

    Das minhas entranhas hoje não brota nenhuma personagem feminina "interessante". Nenhuma terna empregada doméstica segurando um candeeiro nos tempos de infância sombria. Nenhuma avó indígena com suas beberagens. Nem mesmo a minha mãe com seus cinquenta cadernos de escritos bíblicos, vem em meu socorro.

    Estou só, circundada de paredes neste apartamento, e os carros lá embaixo na avenida me chegam com seu barulho célere de quem passa desapercebido, indiferente à solidão que me toma. Nenhum carro irá parar, sequer reduzir a velocidade para chegar perto de alguém em meio ao claustro. Enclausurada de mim mesma. Uma monja que não mais reconhece a face de Deus.

    A estante exígua no meu quarto, bem defronte à minha cama de casal desfigurada, colabora para compor uma atmosfera intimista. Clarice Lispector, "A Paixão Segundo GH"; J. C. Onetti, "Tão Triste como Ela"; Hilda Hilst, "Estar Sendo Ter Sido"; Drummond, muito Drummond e o seu reverberativo, sonoro, bem ritmado desfile de nomes de flor, resultando numa corola sem cor nem nome, anônima, depositada em uma sepultura. Esse poema se chama "Declaração de Amor".

    Na estante exígua de meu quarto, ao contrário daquela que fica em meu gabinete de estudos, meus livros de cabeceira, como que a me olhar, silentes, paralisados. Jorge Luis Borges e "Sete Noites" com a lindíssima conferência sobre a cegueira. Meus livros me olham me interrogando por que não os manuseio, não os folheio, apenas olho para eles como se fossem mudas testemunhas do que se passou comigo.

    Dentro de mim. Há dentro de mim uma borboleta abatida por um caçador impiedoso. O algoz de mim. O tempo que passa fazendo de toda espera um adiamento intolerável. Não posso esperar. Não há tempo. E no entanto, espero. Escrever, sabendo que a mensagem não tem destinatário algum.

    Na mesa da sala, junto ao computador, "olha" para mim "O que é um Autor ?" de Foucault. Fantasias de fazer algo com as Letras me tomam. Letter, litter. Penso em Joyce e não quero saber de Foucault. Quem disse que quero enveredar pelas questões filosóficas que cercam a autoralidade?  Fantasias de fazer algo com as Letras me tomam. Saber fazer com meu Sinthoma?

    Estou bem aqui dentro, espiando para os meus "Brejos D'alma". Vejo canetas, cadernos, tudo espalhado na mesa da sala. E o computador silente. Puta dor. Nenhuma mensagem a acalentar um coração voraz da palavra poética. Onde estão meus amigos poetas? Resulta que o coração esmorece, perde a voracidade. Como querer devorar o verso do outro? O verso que não me pertence, o outro que não me pertence. Voracidade de nada. Anorexia poética.

    Me toma a inapetência de quando meu único irmão homem nasceu depois de mim. Me toma a falta de coragem de encontrar a "Paulicéia Desvairada". Ainda hoje, meu filho adotivo colombiano falou de São Paulo, comigo no Skype : "quando você vem? estamos lhe esperando aqui." Tenho anorexia de São Paulo, o meu objeto mais desejado. Como uma púbere com receios de ser desejada ganhando formas e não come, não vou a São Paulo.

    A imobilidade dos móveis no apartamento me espreita clamando por novidade. Por que não muda-los de posição? Por que não cortar o cabelo? Por que não fazer compras? Não são esses os estratagemas das mulheres desamparadas, abandonadas na sua insatisfação?

    Felizmente li hoje "O Tabu da Virgindade" para discutir no seminário da Letra Freudiana. O velho Freud, sempre tão novo, tão atual! Diz que a mulher é toda ela tabu. Nas tribos primitivas o deflorador costuma não ser o candidato a marido. Para poupar-se do perigo que representa uma mulher que sangra. O que há de tabu em mim, que sou mulher? No que assusto, o que há de proibição ? Será que não me escondo travestida daquela que se expõe? Me digo tanto ao outro que já não sei quem sou quando o outro me escapa?

    Enquanto escrevo vejo que na varanda, recebendo a luz que entra pela vidraça, há uma planta em broto. Um verde vívido de uma futura trepadeira que tímida, se insinua querendo ganhar espaço. Sou eu. Quero ganhar espaço. Como a planta que se insinua, sem nenhum projeto. Simplesmente brota. Ela espera? Esperar até quando? Ao invés de sair exuberante por aí, atraindo aquele que queira recolher meu viço? A planta é um broto. Pode esperar. A planta que como Fênix, renasce.

    Essa mesma planta que hoje brota, já vi desfolhada, decaída. Mas ela teima em renascer, sob os cuidados de Nice. Pra renascer, tem que cuidar. Cuidar de mim. Hoje nem isso me tira desse tom melancólico que me deixa sem personagem sobre quem escrever, que me deixa soturna entre as paredes do apartamento, que me deixa ausente de mim, por ser o outro inalcançável.

    Junto ao computador outro livro me espreita. Não ouso tocá-lo. Não ouso anteprojetar. Não, não e não. É ilusão de ótica. Não é um livro. É apenas um peso de papel em forma de pássaro. Não canta, não pousa, não voa. É o antipássaro. Eu, como se fosse de vidro, em estilhaços. Vou cortar o cabelo.
                                                                                                    Bom domingo a todos,
                                                                                                            Marcia Gomes.

    sábado, 2 de novembro de 2013




  • "Blá, blá, blá domingueiro....." e....Santinha da tribo.‏



  • Caro (a)  leitor (a),

    É chegado o mês de novembro. 2013 ensaia sair do palco. Foram belas cenas. Novos personagens a me trazer uma rica interlocução. Muito estudo, trabalho feliz, entrar no facebook, fazer o blog. Principalmente estar com o outro. Escutando, papeando, indo ao cinema, vendo o pôr do sol, escrevendo e-mail escutando a linda orquestra de passarinhos ao amanhecer. Pensar no envelhecer, na morte, o tempo como algoz, mas sobretudo pensar no amor. Ainda não tenho ideia de como será o último ato. Enquanto aguardamos o grande final, boa leitura do meu texto!

                             03/11/13           SANTINHA  DA  TRIBO

    Seu apelido era SANTINHA. Seu nome? Petronilha. Provavelmente foi batizada assim, quando pôde, contra a vontade, vir beber das águas da civilização. Afinal, onde já se viu uma índia de tribo ser chamada Petronilha? Quem lhe pôs o nome, pétreo, estaria a antever seu jeito de estar no mundo? Pedra e ilha.

    Como já disse, SANTINHA era de origem índia. Ou indígena? Atualmente vivo me dando a perder com as palavras. Cabocla, era ela. Não será por isso que às vezes sou tão antissocial, com meus "calundus" tribais? Interessante que "calundu" parece ser uma palavra de origem africana. Índia e negra, eu sou. Sem lugar? Voltemos a SANTINHA.

    Pelos meus cálculos, devia-se estar por volta de 1925. Seu Zacarias, um tradicional escrivão, dono de cartório no Fórum de Salvador, ficou viúvo, com uns quatro filhos pra criar. Precisava então de uma esposa. Não sei detalhes da história. Segredos de família guardados a sete chaves que se vão lendo nas entrelinhas. Talvez, pagando, recebeu aquela cabocla como candidata.

    Olhos oblíquos, pele acobreada um tanto amarelecida, cabelos negros batendo na cintura, nenhum sorriso, assim era SANTINHA. Ascendência índia, já com sinais de miscigenação, foi "pegada a cachorro". Assim ouvi a empregada da casa contar. Quer dizer, colocaram cachorros no mato na caça à SANTINHA. Foi apreendida, e, desse modo, desenraizada de sua gente, sua tribo, chegou para casar com Seu Zacarias.

    Dá pra acreditar? Já em começos do século XX, em plena Salvador-Bahia, uma mulher é brutalmente afastada do seu povo que vive no mato, de suas raízes índias e levada à força a morar na cidade, no convívio da civilização.

    Que convívio, o quê? SANTINHA  era amuada. Circunspecta. Como um bicho acuado, vivia em silêncio. Não sei como acabou de criar os filhos de Seu Zacarias e teve outros tantos. Pelas minhas contas teve seis rebentos.

    Minhas primeiras recordações dela, vêm desde os meus três anos de idade, mais ou menos. Nunca a vi, nem de longe, exercendo os papéis esperados de uma mulher, na década de 50. Nunca a vi administrando a casa, dispensando quaisquer cuidados aos netos. Nunca a vi conversando com os filhos. Assim, conversa de papear mesmo, nunca vi. Só curtas frases entrecortadas de silêncio. Como esposa, não sei como era. Quando a conheci já era viúva. Seu Zacarias faleceu antes que eu nascesse.

    SANTINHA se ocupava de uma gata. Tinha uma forte vinculação e a batizou com o curioso nome de "Tapeação". Mas aqui não sou psicanalista. Sou "escrevedora" de histórias para entreter o leitor. SANTINHA dava banho em "Tapeação" amarrando-a dentro de uma fronha. E lhe fazia afagos, lhe dizia coisas, dava à gata tudo o que não dava às pessoas da casa.

    Acordava cedo e logo se envolvia com as suas infusões. Na casa tinha um armário com algumas prateleiras sobre as quais depositava os vasilhames para receber os chás. Assim ela passava o dia : cozinhando ervas, preparando chás. Ainda me recordo dos aromas. Aquilo, para nós, não tinha serventia. Era um demorado, silencioso ritual de resgate de suas origens. As ervas e a gata, as razões de viver de SANTINHA.

    Tenho desse tempo uma recordação muito particular : estávamos, eu e SANTINHA na sala da casa, ela concentrada nas suas infusões. Na mesa estava servido um arroz-doce, que eu, gulosa, subi num banco para alcançar. SANTINHA, de costas pra mim, ocupada com suas beberagens. Não lhe ocorria me tirar dali ou me servir o arroz-doce. Minha estripulia tentando alcançar a guloseima, resultou num corte sangrento no meu queixo. SANTINHA, de costas pra mim, ocupada com suas beberagens. Eu chorei, berrei, gemi, gritei. SANTINHA e as suas beberagens. Meu pai e minha mãe vieram em meu socorro. Levei vários pontos no queixo. Ainda hoje tenho restos da cicatriz. SANTINHA, de costas pra nós, ocupada com suas beberagens.

    Também recordo, quando Maria José, minha tia, era levada por enfermeiros para ser internada no Juliano, SANTINHA, de costas, cuidando das infusões. Aqui a nosologia psiquiátrica faria a festa. Mil rótulos pra SANTINHA. Podíamos chamar aquilo de indiferença? Não quero rótulos civilizatórios para SANTINHA. O irremediável abismo cultural. Despojada dos seus, das suas origens, ela não pertencia a nosso mundo. De familiar, só a gata. Por que será que ela imprimia marcas civilizatórias à "Tapeação" e lhe dava banho? Não sei. Não sei. Vai entender cabeça de índia, "pegada a cachorro"......

    Nunca entendi. Só sei que gosto de ficar no meu canto, tenho meus amuos. Estranho muito o que não me é familiar, e, às vezes, me recolho nos meus livros, meus escritos. Nunca entendi as idiossincrasias de minha avó paterna. Só sei que gosto de ficar no meu canto.
                                                                                                  Bom domingo a todos,
                                                                                                                   Marcia Gomes.