sábado, 16 de novembro de 2013



  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e....Lió.‏



  • 17/11/13                              LIÓ

    Era franzina. Quase uma folha ao vento. Idosa. E antiga na casa. Uma espécie de agregada. Vinha do Engenho Velho de Brotas para o bairro de Nazaré costurar para seu Zacarias Germano Gomes e toda sua família. Vinha costurar e dormia uma noite, duas, quando viu já estava morando lá.

    Pelos meus cálculos, deve ter se aproximado da família por volta de 1930, quando meu pai estava com um ano de idade. Leonídia, nessa época, já era uma senhora contando em torno de setenta anos. Acompanhou o crescimento de meu pai e de meus tios do segundo casal, provavelmente fazendo contraponto ao alheamento taciturno de Dona Santinha, a da tribo.

    Não estaria na presença de Leonídia na casa, a resposta para a indagação se meu pai e seus irmãos teriam podido ter uma infância lúdica e afetuosa? Sem dúvida ela foi uma espécie de mãe postiça que cuidou daquelas crianças com amor e dedicação. Na verdade, pela sua idade, nem mãe. Avó.

    Então com seus óculos de aros redondos, vestidos sempre de mangas compridas e golas altas, cabelos grisalhos e longos amarrados num coque, altiva e magra como uma vara de pescar, Lió -- assim era chamada -- testemunhava continente a dinâmica daquela família grande e um tanto desordenada que acolhia numa mesma casa algumas gerações. Testemunha muitas vezes sentada à máquina de costura.

    Embora já uma avó postiça, ninguém a chamava de Dona, Senhora, nada dessas coisas. Pra todos era simplesmente Lió. Creio que até tratada com uma certa irreverência por parte de meu pai que gostava de perturbá-la com algumas anedotas indecentes e mexendo jocosamente com sua solteirice. Simplesmente Lió.

    Pois foi esse nome, de uma anciã beirando os cem anos, o primeiro que pronunciei nos meus balbucios. Isso está registrado por meus pais no meu álbum de bebê que guardo até hoje. Assim como lá está também registrada a história da barata que conto já, já.

    Quando nasci, ainda que muito idosa, Lió era forte, saudável e lúcida. Uma figura de apego e de referência fundamental na minha vida. Há milhares de fotografias, ela me carregando no colo. Era minha madrinha e me cercava de mimos. Eu usufruía, quase com exclusividade, de seus paparicos. Nas fotos eu apareço sempre com vestidinhos singelos cheios de laços e bordados confeccionados por ela com o maior esmero. Lió se ocupava da máquina de costura e da sua pequena afilhada.

    Tantos paparicos e a vontade determinada de não me contrariar, que Lió permitiu que eu chupasse uma barata. Eu era de meses. Engatinhando pela casa encontrei o nojento inseto e o coloquei na boca. Meus pais, felizmente, surpreenderam a cena e quase morreram de tanto brigar com Lió, por tamanha e imprudente falta de juízo. Ela apenas respondeu que não achava de bom alvitre me desapontar arrancando a barata de minha boca. Lúcida, hein?

    Lió era hipertensa. Portanto cozinhava sua comida em separado, sem sal. Sua, não. Nossa comida. Porque se meus pais bobeassem, era com aquilo que eu era alimentada. E comia e gostava. Como não gostar do que me oferecia aquela madrinha tão terna, amorosa? Meus pais que se resolvessem com ela. Eu estava muito feliz com seus mimos.

    Eu sempre fui muito sensível. Deve ter sido muito sofrida a minha separação de Lió quando a deixamos na casa de Nazaré e mudamos para Taperoá. Não tenho registro desta dor, que certamente houve, talvez atenuada com as minhas vindas a Salvador para fazer os óculos.

    Mas com aquela anciã que me iniciou nos ritos de celebração da vida, mesmo à custa de quase engolir uma barata, tive uma precoce, doída, assustadora e primeira experiência com a morte.

    Nós já morávamos em Ibirataia, eu com uns sete pra oito anos, e meu pai me chamou para uma conversa séria. Não me poupou. Me disse que Lió havia voltado para a casa de seus familiares no Engenho Velho de Brotas porque estava muito doente. E disse mais. Talvez com os recursos discursivos com que se argumenta com uma criança, meu pai me deixou ciente que minha madrinha iria morrer em breve.

    Dessa dor eu guardo registro. Entramos, eu e meu pai, numa casa muito humilde no Engenho Velho de Brotas. Havia pessoas ao redor. Primeira vez que fiz contato com pessoas de Lió que não fossem da minha família. Ela, esquálida, praticamente só cabelos, deitada numa cama, me reconheceu. Compenetrada na minha dor, me despedi de minha madrinha.

    Ainda esta semana, um amigo poeta muito sensível, me mandou de Jorge Luis Borges : "Sólo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos".
                                                                              Bom domingo a todos,
                                                                                                  Marcia Gomes.

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