sábado, 9 de novembro de 2013


  • "Blá, blá, blá domingueiro....."e......Estilhaços.



  • 10/11/13                                  ESTILHAÇOS

    Das minhas entranhas hoje não brota nenhuma personagem feminina "interessante". Nenhuma terna empregada doméstica segurando um candeeiro nos tempos de infância sombria. Nenhuma avó indígena com suas beberagens. Nem mesmo a minha mãe com seus cinquenta cadernos de escritos bíblicos, vem em meu socorro.

    Estou só, circundada de paredes neste apartamento, e os carros lá embaixo na avenida me chegam com seu barulho célere de quem passa desapercebido, indiferente à solidão que me toma. Nenhum carro irá parar, sequer reduzir a velocidade para chegar perto de alguém em meio ao claustro. Enclausurada de mim mesma. Uma monja que não mais reconhece a face de Deus.

    A estante exígua no meu quarto, bem defronte à minha cama de casal desfigurada, colabora para compor uma atmosfera intimista. Clarice Lispector, "A Paixão Segundo GH"; J. C. Onetti, "Tão Triste como Ela"; Hilda Hilst, "Estar Sendo Ter Sido"; Drummond, muito Drummond e o seu reverberativo, sonoro, bem ritmado desfile de nomes de flor, resultando numa corola sem cor nem nome, anônima, depositada em uma sepultura. Esse poema se chama "Declaração de Amor".

    Na estante exígua de meu quarto, ao contrário daquela que fica em meu gabinete de estudos, meus livros de cabeceira, como que a me olhar, silentes, paralisados. Jorge Luis Borges e "Sete Noites" com a lindíssima conferência sobre a cegueira. Meus livros me olham me interrogando por que não os manuseio, não os folheio, apenas olho para eles como se fossem mudas testemunhas do que se passou comigo.

    Dentro de mim. Há dentro de mim uma borboleta abatida por um caçador impiedoso. O algoz de mim. O tempo que passa fazendo de toda espera um adiamento intolerável. Não posso esperar. Não há tempo. E no entanto, espero. Escrever, sabendo que a mensagem não tem destinatário algum.

    Na mesa da sala, junto ao computador, "olha" para mim "O que é um Autor ?" de Foucault. Fantasias de fazer algo com as Letras me tomam. Letter, litter. Penso em Joyce e não quero saber de Foucault. Quem disse que quero enveredar pelas questões filosóficas que cercam a autoralidade?  Fantasias de fazer algo com as Letras me tomam. Saber fazer com meu Sinthoma?

    Estou bem aqui dentro, espiando para os meus "Brejos D'alma". Vejo canetas, cadernos, tudo espalhado na mesa da sala. E o computador silente. Puta dor. Nenhuma mensagem a acalentar um coração voraz da palavra poética. Onde estão meus amigos poetas? Resulta que o coração esmorece, perde a voracidade. Como querer devorar o verso do outro? O verso que não me pertence, o outro que não me pertence. Voracidade de nada. Anorexia poética.

    Me toma a inapetência de quando meu único irmão homem nasceu depois de mim. Me toma a falta de coragem de encontrar a "Paulicéia Desvairada". Ainda hoje, meu filho adotivo colombiano falou de São Paulo, comigo no Skype : "quando você vem? estamos lhe esperando aqui." Tenho anorexia de São Paulo, o meu objeto mais desejado. Como uma púbere com receios de ser desejada ganhando formas e não come, não vou a São Paulo.

    A imobilidade dos móveis no apartamento me espreita clamando por novidade. Por que não muda-los de posição? Por que não cortar o cabelo? Por que não fazer compras? Não são esses os estratagemas das mulheres desamparadas, abandonadas na sua insatisfação?

    Felizmente li hoje "O Tabu da Virgindade" para discutir no seminário da Letra Freudiana. O velho Freud, sempre tão novo, tão atual! Diz que a mulher é toda ela tabu. Nas tribos primitivas o deflorador costuma não ser o candidato a marido. Para poupar-se do perigo que representa uma mulher que sangra. O que há de tabu em mim, que sou mulher? No que assusto, o que há de proibição ? Será que não me escondo travestida daquela que se expõe? Me digo tanto ao outro que já não sei quem sou quando o outro me escapa?

    Enquanto escrevo vejo que na varanda, recebendo a luz que entra pela vidraça, há uma planta em broto. Um verde vívido de uma futura trepadeira que tímida, se insinua querendo ganhar espaço. Sou eu. Quero ganhar espaço. Como a planta que se insinua, sem nenhum projeto. Simplesmente brota. Ela espera? Esperar até quando? Ao invés de sair exuberante por aí, atraindo aquele que queira recolher meu viço? A planta é um broto. Pode esperar. A planta que como Fênix, renasce.

    Essa mesma planta que hoje brota, já vi desfolhada, decaída. Mas ela teima em renascer, sob os cuidados de Nice. Pra renascer, tem que cuidar. Cuidar de mim. Hoje nem isso me tira desse tom melancólico que me deixa sem personagem sobre quem escrever, que me deixa soturna entre as paredes do apartamento, que me deixa ausente de mim, por ser o outro inalcançável.

    Junto ao computador outro livro me espreita. Não ouso tocá-lo. Não ouso anteprojetar. Não, não e não. É ilusão de ótica. Não é um livro. É apenas um peso de papel em forma de pássaro. Não canta, não pousa, não voa. É o antipássaro. Eu, como se fosse de vidro, em estilhaços. Vou cortar o cabelo.
                                                                                                    Bom domingo a todos,
                                                                                                            Marcia Gomes.

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