sábado, 2 de novembro de 2013




  • "Blá, blá, blá domingueiro....." e....Santinha da tribo.‏



  • Caro (a)  leitor (a),

    É chegado o mês de novembro. 2013 ensaia sair do palco. Foram belas cenas. Novos personagens a me trazer uma rica interlocução. Muito estudo, trabalho feliz, entrar no facebook, fazer o blog. Principalmente estar com o outro. Escutando, papeando, indo ao cinema, vendo o pôr do sol, escrevendo e-mail escutando a linda orquestra de passarinhos ao amanhecer. Pensar no envelhecer, na morte, o tempo como algoz, mas sobretudo pensar no amor. Ainda não tenho ideia de como será o último ato. Enquanto aguardamos o grande final, boa leitura do meu texto!

                             03/11/13           SANTINHA  DA  TRIBO

    Seu apelido era SANTINHA. Seu nome? Petronilha. Provavelmente foi batizada assim, quando pôde, contra a vontade, vir beber das águas da civilização. Afinal, onde já se viu uma índia de tribo ser chamada Petronilha? Quem lhe pôs o nome, pétreo, estaria a antever seu jeito de estar no mundo? Pedra e ilha.

    Como já disse, SANTINHA era de origem índia. Ou indígena? Atualmente vivo me dando a perder com as palavras. Cabocla, era ela. Não será por isso que às vezes sou tão antissocial, com meus "calundus" tribais? Interessante que "calundu" parece ser uma palavra de origem africana. Índia e negra, eu sou. Sem lugar? Voltemos a SANTINHA.

    Pelos meus cálculos, devia-se estar por volta de 1925. Seu Zacarias, um tradicional escrivão, dono de cartório no Fórum de Salvador, ficou viúvo, com uns quatro filhos pra criar. Precisava então de uma esposa. Não sei detalhes da história. Segredos de família guardados a sete chaves que se vão lendo nas entrelinhas. Talvez, pagando, recebeu aquela cabocla como candidata.

    Olhos oblíquos, pele acobreada um tanto amarelecida, cabelos negros batendo na cintura, nenhum sorriso, assim era SANTINHA. Ascendência índia, já com sinais de miscigenação, foi "pegada a cachorro". Assim ouvi a empregada da casa contar. Quer dizer, colocaram cachorros no mato na caça à SANTINHA. Foi apreendida, e, desse modo, desenraizada de sua gente, sua tribo, chegou para casar com Seu Zacarias.

    Dá pra acreditar? Já em começos do século XX, em plena Salvador-Bahia, uma mulher é brutalmente afastada do seu povo que vive no mato, de suas raízes índias e levada à força a morar na cidade, no convívio da civilização.

    Que convívio, o quê? SANTINHA  era amuada. Circunspecta. Como um bicho acuado, vivia em silêncio. Não sei como acabou de criar os filhos de Seu Zacarias e teve outros tantos. Pelas minhas contas teve seis rebentos.

    Minhas primeiras recordações dela, vêm desde os meus três anos de idade, mais ou menos. Nunca a vi, nem de longe, exercendo os papéis esperados de uma mulher, na década de 50. Nunca a vi administrando a casa, dispensando quaisquer cuidados aos netos. Nunca a vi conversando com os filhos. Assim, conversa de papear mesmo, nunca vi. Só curtas frases entrecortadas de silêncio. Como esposa, não sei como era. Quando a conheci já era viúva. Seu Zacarias faleceu antes que eu nascesse.

    SANTINHA se ocupava de uma gata. Tinha uma forte vinculação e a batizou com o curioso nome de "Tapeação". Mas aqui não sou psicanalista. Sou "escrevedora" de histórias para entreter o leitor. SANTINHA dava banho em "Tapeação" amarrando-a dentro de uma fronha. E lhe fazia afagos, lhe dizia coisas, dava à gata tudo o que não dava às pessoas da casa.

    Acordava cedo e logo se envolvia com as suas infusões. Na casa tinha um armário com algumas prateleiras sobre as quais depositava os vasilhames para receber os chás. Assim ela passava o dia : cozinhando ervas, preparando chás. Ainda me recordo dos aromas. Aquilo, para nós, não tinha serventia. Era um demorado, silencioso ritual de resgate de suas origens. As ervas e a gata, as razões de viver de SANTINHA.

    Tenho desse tempo uma recordação muito particular : estávamos, eu e SANTINHA na sala da casa, ela concentrada nas suas infusões. Na mesa estava servido um arroz-doce, que eu, gulosa, subi num banco para alcançar. SANTINHA, de costas pra mim, ocupada com suas beberagens. Não lhe ocorria me tirar dali ou me servir o arroz-doce. Minha estripulia tentando alcançar a guloseima, resultou num corte sangrento no meu queixo. SANTINHA, de costas pra mim, ocupada com suas beberagens. Eu chorei, berrei, gemi, gritei. SANTINHA e as suas beberagens. Meu pai e minha mãe vieram em meu socorro. Levei vários pontos no queixo. Ainda hoje tenho restos da cicatriz. SANTINHA, de costas pra nós, ocupada com suas beberagens.

    Também recordo, quando Maria José, minha tia, era levada por enfermeiros para ser internada no Juliano, SANTINHA, de costas, cuidando das infusões. Aqui a nosologia psiquiátrica faria a festa. Mil rótulos pra SANTINHA. Podíamos chamar aquilo de indiferença? Não quero rótulos civilizatórios para SANTINHA. O irremediável abismo cultural. Despojada dos seus, das suas origens, ela não pertencia a nosso mundo. De familiar, só a gata. Por que será que ela imprimia marcas civilizatórias à "Tapeação" e lhe dava banho? Não sei. Não sei. Vai entender cabeça de índia, "pegada a cachorro"......

    Nunca entendi. Só sei que gosto de ficar no meu canto, tenho meus amuos. Estranho muito o que não me é familiar, e, às vezes, me recolho nos meus livros, meus escritos. Nunca entendi as idiossincrasias de minha avó paterna. Só sei que gosto de ficar no meu canto.
                                                                                                  Bom domingo a todos,
                                                                                                                   Marcia Gomes.                       


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