domingo, 25 de maio de 2014

25/05/14                            NA  CORDA-BAMBA

Semana especialíssima, essa que entra. No próximo dia 29 de maio, fazem aniversário dois amigos queridos e poetas. Uma amiga e um amigo.

A amiga, de mais tempo, na verdade há mais de quarenta anos de bonito laço afetivo comigo, está fazendo 60. Fomos colegas de faculdade e estamos presentes uma na vida da outra, na dor e na alegria. Mesmo quando nos desentendemos por razões pueris ou mais sérias, cuidamos de preservar entre nós o respeito pelo espaço literário. Afinal, uma das coisas que nos aproximou é a nossa paixão por Drummond.

Ela é minha amiga poeta. Tem livros publicados e ganhou o importante prêmio Braskem de poesia. Além de poeta, generosa. Ao invés de fazer uma festa convencional comemorativa dos seus 60 anos, vai celebrá-los enviando aos amigos uma surpresa literária.

Poeta e generosa. Na semana do seu aniversário, já lembrou do meu e me presenteou com uma passagem de avião para eu fazer uma viagem de visita à minha mãe que também aniversaria em 16 de junho.

Tempo de aniversários. Ontem, completou a idade de Cristo Vitinho, o filho da minha amiga poeta. Ela, exemplo inimitável de exercício de maternagem, feliz com esse filho, fotógrafo sensível que já lhe deu uma netinha. Tempo de aniversários. Tem a minha prima Elyana. No dia 4 de junho é a vez de Sandra, minha irmã mais velha. Lembram dela? Aquela que é dona de um salão de beleza em Aracaju. No dia 19 é minha vez de fazer 61 anos e também aniversaria Lívia, uma sobrinha querida.

Com a proximidade do meu aniversário, como esquecer a linda surpresa de 60 anos que me fez a amiga poeta no ano passado? Junto com outra pessoa também querida, mobilizou um monte de gente que me quer bem e fizeram uma gorda "vaquinha" para me restituir uma obra de arte de valor afetivo inestimável e que eu precisei colocar à venda numa galeria.

É assim minha amiga poeta. Generosa ao extremo e "avoada". Acabou de me telefonar dizendo que não lhe dei uma informação numérica que na verdade, acabei de lhe dar. Isso nada tem a ver com a idade. Seus neurônios vão muito bem obrigada. Mas é chegada a rodopios da imaginação. "Avoada", vive "trocando alhos por bugalhos"; mas não troca gato por lebre. Não troca gato por nada. É louca por gatos e, para vê-los por perto concede à alergia todos os malefícios que lhe pode fazer. Cabeça de poeta é uma coisa danada de bonita e cheia de controvérsias.

É assim minha amiga poeta. Tem o dom do riso. Isso provavelmente lhe faz bem à pele. Outro dia, Nice, minha auxiliar doméstica, surpresa com a idade da minha amiga, disse que não lhe dava mais que 40 anos. É assim a minha amiga poeta. O seu verso, enxuto de palavras desnecessárias, tem uma densidade dramática de fazer medo. Ela, que socialmente não é muito afeita às lágrimas, chora em verso. Ri em verso. E como traço da família de seu pai que também é poeta, em verso ela se maravilha com as coisas mais triviais do cotidiano. Ela é o maravilhamento circunscrito em palavras.

Quando fica difícil respirar, ela inspira e expira com o largo fôlego de sua poesia que nos arrebata para um universo de encantamento estético de mobilizar a alma mais insensível. Ela toca o outro.

Às vezes, quando não estou de bem com as minhas imperfeições que não são poucas, me pergunto o que fiz para merecer uma amiga tão dadivosa quase como uma mãe e ainda por cima, poeta. Nenhuma resposta à minha pergunta se afigura satisfatória. É que nessa vida cheia de contingências, cheia dos inexplicáveis, a gente recebe independentemente de merecer. É que a minha amiga não estabelece condições. Ana, é de graça.

E o meu amigo poeta que também faz aniversário no dia 29 de maio? Amigo de pouco tempo, nos conhecemos no ano passado e nunca nos vimos. Nos escrevemos quase diariamente. E quase diariamente eu recebo um poema algumas vezes recém saído do forno. E ele  "ouve" minha opinião sobre o poema. Leva a sério.

Será a generosidade privilégio dos poetas? Ou não? Sou eu mesma que dou sorte com os amigos.... Erudito, exímio conhecedor da Língua Portuguesa sem qualquer deslize, todo domingo ele tem paciência de ler o meu "Blá, blá, blá..." e comentar. Comenta comigo como se eu lhe fosse uma igual. Escritor destituído de vaidades narcísicas. Me toca profundamente uma pessoa com sua estatura intelectual, ter a simplicidade que tem esse meu amigo.

Seu verso é um assombro de beleza. Filho de uma operária de uma fábrica de charutos em Muritiba, sua alma ecoa junto com as dores daqueles que carregam as marcas das rotinas oprimidas das senzalas. Esse meu amigo privilegia nos seus poemas personagens de vidas desafortunadas no plano sócio-econômico. É de sua autoria o poema que abordei no domingo passado sobre o "louco" ostentando medalhas de tampinhas de refrigerante.

Desde que esse amigo poeta entrou no meu dia a dia, minha vida se transfigurou. Até passei a agradecer ao mundo contemporâneo pela existência da internet. Acordo mais vivificada pelo ânimo que perpassa a nossa correspondência. Trocamos atenções, impressões, opiniões e partilhamos coisas de nossas histórias de vida. Ele me chama de modo carinhoso e brincalhão de "Doutora Freud". E tem uma arguta sensibilidade para apreender as coisas da psicanálise.

O seu livro de poesia intitulado "Pássaro de Vidro", para mim uma obra-prima, reside na minha mesa de cabeceira e já instigou em mim fantasias de voltar a sentar nos bancos da academia, para escrever sobre ele. O boletim poesia.net que envio a vocês às quartas-feiras, é trabalho árduo e precioso desse meu amigo. Por tudo isso e pelo que não tenho dom poético de por em palavras, feliz aniversário, Carlos!

Semana que entra especialíssima. Aniversário no mesmo dia de dois amigos poetas que são amigos entre si. Ter poetas como esses como amigos, é como poder se arriscar a viver na corda-bamba sem precisar morrer. Privilégio. Tê-los na minha vida é uma rede de proteção para a equilibrista de circo que sou. Equilibrista e grata.
                                                                                                          Marcia Gomes.

domingo, 18 de maio de 2014

18/05/14                 "MAIS  LOUCO  É  QUEM  ME  DIZ......"

Não faço parte do movimento "Luta Antimanicomial" . Penso que há nele uns tantos equívocos. Além disso, depois da minha militância de esquerda adolescencial, fiquei avessa a movimentos. Ainda prefiro a poesia que pode cantar o movimento do vento, o movimento dos corpos enlaçados dos amantes, sem qualquer militância.

Como já contei àqueles que leram minha crônica intitulada "Maria José"  (blog: blablablazista.blogspot.com.br ), apenas com quatro anos de idade, eu assisti aos enfermeiros do Juliano doparem e amarrarem com uma camisa de força uma jovem que se vestia com saia de cetim e blusa de lamê e lantejoulas. A jovem saiu para uma festa construída na sua imaginação. Quando voltou desfeita e esfarrapada é que foi trancafiada pelos enfermeiros. Essa jovem era minha tia. Como me esquecer disso?

Estou relendo Foucault com vistas a um labor que escapa do fazer clínico psicanalítico e descamba um pouco para a literatura. Releio "O que é um Autor?" , "História da Loucura" e "Os Anormais" . A crítica ao estatuto de "autor" reivindicando o direito de ser senhor do livro, numa imposição de suas pontuações, escondido sob a autoridade de um nome. A desconstrução da categoria "sujeito" enquanto um indivíduo inteiro, completo. Para Foucault o sujeito é somente um ser de discurso, que, sob a linguagem, se desvanece. A denúncia do biógrafo como fraudulento quando se arvora a ser detentor da verdade sobre o biografado, ao invés de ser um mero leitor de um discurso, entre outros. E, principalmente, a  crítica contundente ao rótulo "doença mental" como interdição que delimita policialescamente a fronteira entre razão e loucura. Ah, Foucault, felizmente esse grande transgressor que tentou dar voz aos deserdados.

Todos os dias penso na chamada "loucura". E, felizmente, converso com poetas. Cada vez procuro mais me aproximar deles. Deles, os leitores da alma desarmados de qualquer teoria. Numa dessas trocas de E-mail  chega um poema que me fez chorar copiosamente. É um poema sobre um "louco" de rua numa cidade do interior da Bahia no começo da década de 60.

 Naquela época, em cidades de interior não havia hospícios, muito menos psiquiatras. E os "loucos" podiam perambular pelas ruas, de certa forma como figuras folclóricas, de certa forma como parte da cultura popular. Ainda que abandonados à sorte, não seria essa condição mais humana do que a internação psiquiátrica? Pelo menos eram reconhecidos como parte do imaginário da cidade. Aqui em Salvador, cada vez menos podemos assistir a isso. São poucos os que ainda podem dar um prato de comida ou um cigarro ao nosso querido e silencioso "Samuca". Quantos de vocês recordam da "Mulher de Roxo", também silenciosa, perambulando pela Rua Chile, sem vergonha do batom vermelho extrapolando os limites da boca?

O que tanto me fez chorar no poema sobre o "louco" de rua? O corajoso e desamparado depor as armas do poeta. Leu no personagem a beleza de sua alegoria, destituído de quaisquer pretensões teórico-psicológicas ou filosóficas. E, como poeta, reconhece como legítima a sua viagem delirante, de certa forma se identificando com ela. Muito bonito, muito sensível.

O poema fala de um homem mal trapilho que anda na rua em marcha como se pisasse em tapetes vermelhos. No casaco andrajoso  dependura tampinhas de refrigerante, medalhas de santo, outros pequenos objetos em lata, que fazem o lugar de insígnias de um conde ou general. Assim o personagem marcha garboso em pose marcial. Sensível, o poeta conclama aqueles que escarnecem do "louco" a bater-lhe continência e abrir alas com toda a reverência.

Agradeço imensamente ter podido ler esse poema. Quando vejo os meus amigos politizados falando da defesa dos direitos dos trabalhadores, quando vejo os oprimidos pelo racismo levantarem a bandeira em defesa dos negros, quando vejo os empenhados em preservar o meio ambiente, quando vejo a defesa dos direitos das mulheres e das minorias em geral, acho tudo muito justo mas penso nos "loucos", que a eles mesmos, quase sempre, não podem defender. Quem os defenderá?

 Não creio que haja categoria de sujeitos vítima de maiores preconceitos. É muito comum se ver pessoas apontarem o dedo em riste discriminando pessoal e profissionalmente aqueles que tomam medicação prescrita por um psiquiatra. Para essas pessoas, a "tarja preta" se imprime ao usuário como rótulo de "doente mental" . Para essas pessoas, não se fica "louco". Para essas pessoas a "loucura" não é uma condição engendrada pelas relações sócio-afetivas. É-se "louco" como uma coisa intrínseca, maléfica e contagiosa como uma doença venérea. O seu portador pode até beneficiar-se de tratamento médico e psicoterápico mas tem que ficar excluído dos laços sociais. Quantas vezes, quando queremos desqualificar uma pessoa dizemos em tom de brincadeira: "você tá maluco, menino?" Quantas vezes, nós, os esclarecidos, nós os politicamente corretos, contamos piada de "maluco" nas rodas sociais? 

É, meus amigos, não me esqueço de minha tia.  Fora da crise era uma pessoa como qualquer uma de nós. Sensata, sensível, inteligente. Perfeitamente capaz de fazer escolhas e gerenciar sua vida. Fico muito triste quando vejo que os rápidos avanços na psiquiatria e até mesmo na psicanálise em alguns casos, devolvem às pessoas habilidades e capacidades, mas nem sempre lhes devolvem a respeitabilidade e o afeto destituído de preconceitos que merecem como cidadãos e sujeitos.

Por tudo isso, muito triste, vou ficando com os poetas, os músicos. Fico com Ney Matogrosso: "Mais louco é quem me diz que não é feliz."
                                                                                Marcia Gomes. 

domingo, 11 de maio de 2014

11/05/14                         FRIVOLIDADES

A tarde ficou frívola. Meu compromisso de estudo de Lacan não se concretizou. Saindo do consultório pego um táxi na direção de casa. O céu é de um azul gaivota. Não que eu já tenha visto uma gaivota azul. Mas é que o azul do céu parece estar fazendo volteios aéreos sobre todas as coisas. Como uma gaivota, planando.

 Penso que estou fazendo um verdadeiro ato de redenção dos pecadilhos tecnológicos da era computacional. Eu, filha de comunista, avessa à tecnologia, eu, com QI discutível quanto a saberes internéticos, eu, uma crítica ferrenha daqueles que aderem à comunicação pelas redes sociais, constato que estou vivendo a redenção. Com uma certa resistência, me vejo admitindo que minha vida mudou depois que entrei no Facebook. Ainda esta semana jantei com um querido amigo da década de 70 que reencontrei no Face. Reencontrei também uma amiga de São Paulo muito querida que não vejo há mais de 20 anos. Reencontrei colegas de faculdade, ex-alunos, enfim, estou incrementando meus laços sociais por essa via tão discutível. Meu filho adotivo me ensinou que é só acessar o tal do Google e milhares de serviços se fazem disponíveis. Economia de táxi, já que não dirijo mais, economia de tempo e de telefone.

Acessando o tal do Google, encontrei uma forma de obter um livro dificílimo que se chegar a tempo vai me permitir fazer uma surpresa de aniversário a um amigo muito caro. Vocês podem não acreditar, mas até de uma conexão internética chamada Linkedin, onde a gente coloca o nosso perfil profissional, eu estou participando.

Mas deixemos o computador pra lá porque ainda prefiro o azul gaivota do céu. Por falar em azul, por falar em gaivota, por falar em volteios aéreos, penso agora que uma queridíssima amiga fará 60 anos no dia 29 próximo. Fazer 60 anos, no mínimo nos garante pagar meia no cinema. Como será essa passagem  para ela, excelente poeta chegada aos volteios aéreos? Tomara que  não invente de aterrissar só porque faz 60. Quero vê-la planando como sempre com 60, 80, 100 anos.

Penso se gostei ou não gostei do filme "Getúlio". Um lado meu, curioso por entender a atmosfera política que cercava os personagens daquela época, não gostou. O filme parece ser mais centrado na pessoa do que no cenário político. Um outro lado meu, interessado nos dilemas e mistérios da subjetividade, gostou. É que o filme parece querer preservar as ambiguidades que cercaram a personalidade de Getúlio. Pode se sair do filme sem saber a "verdade" sobre o famoso atentado a Carlos Lacerda. Pode se sair do filme se interrogando sobre o que mesmo levou Getúlio ao suicídio. Pode se sair do filme sem saber a verdade sobre a melancolia do presidente. A essa altura da vida e com meu gosto pela psicanálise, como acreditar que pode existir a verdade dos fatos propagada por certas vertentes positivistas da ciência? Verdade, sim, mas não-toda. Verdade, sim, mas com estrutura de ficção. Mas deixemos o filme de lado porque não é muito educado antecipar a história para quem ainda não viu.

Com o coração apertado, penso agora que uma pessoa muitíssimo querida está vivendo um dilema de grande magnitude. Precisa fazer uma escolha importante para sua vida, sem que disponha dos elementos necessários para a análise das alternativas. Penso na tensão que está vivendo e sinto vontade de lhe dar colo. Como não tenho reza certa, até pedi a minha mãe para com sua reza fervorosa pedir para a pessoa fazer a escolha certa.

E aí, pensando na reza de minha mãe, penso nela. Penso que o domingo em que enviarei o "Blá, blá, blá....." pra vocês será, o tão celebrado pelo comércio, Dia das Mães. Não é que eu aderi aos apelos do comércio e pedi a minha cunhada pra comprar um presente bem bonito pra minha mãe? Não é que vou ficar o domingo todo colada ao computador, esperando que meu irmão possa colocá-la para falar comigo no Skype? O Dia das Mães é importante para ela e é isso que conta. Não importa que não seja pra mim. Pois é, em junho próximo minha mãe fará 81 anos.  Há quanto tempo não a vejo pessoalmente? Há quanto tempo não a abraço? Saudade da mãe querida que todo dia me diz ao telefone: "Deus lhe abençoe". Vejo que sua vozinha vai ficando frágil. Vejo que sua memória de eventos passados é muito mais fiel que a memória imediata. Vejo que deseja muito escrever a história da sua vida e as questões de saúde estão forçando um adiamento do projeto. Queria agora ser uma gaivota azul e pousar bem pertinho dela  guiando sua mão na escrita de sua história. Mas que a história saísse por meio de volteios aéreos sem ter que fazer pouso forçado nos momentos de dor. É tão bom poder reinventar a própria história.....

Entre fazer coisas triviais em casa e escrever, a tarde frívola vai passando. O azul do céu já sucumbiu. Tons róseos metamorfoseando as nuvens anunciam a transição para noite sem que possamos saber como será. Podemos pensar frivolidades, mas não podemos controlar o imponderável. Como será minha noite? De repente é o telefone que toca com alguém me dando uma notícia mobilizante. De repente sou eu que entro num clima de construir conteúdos edificantes. De repente, nada acontece senão a frívola novela das nove. Não, de repente pego um livro interessante e toda minha vida se ressignifica. De repente, só pra rimar, uma serpente se arrasta por debaixo da porta e me pica com  veneno bem na jugular. A noite....de repente.......De repente recebo um E-mail e respondo comentando revelações oníricas. Melhor que se deixar picar pela serpente, é acolher o antídoto benfazejo vindo de um amigo. E a noite....de repente...do seu negror verídico de abismo, na fantasia também ficou azul.
                                                                                         Marcia Gomes.


segunda-feira, 5 de maio de 2014


                                                                                            
04/05/14                              MATERNAGEM

Eu morava sozinha num apartamento de 3 quartos com 2 banheiros sociais no Jardim Apipema. Muito grande para mim que tenho a família distante. A única sobrinha que tenho morando em Salvador, depois de usufruir por dois anos do meu acolhimento e da minha hospedagem com casa, comida, roupa lavada, empregada e café da manhã na cama, me deu as costas que nem sei por onde anda. Bastou eu sugerir que seu filhinho, meu sobrinho-neto, seriamente asmático, talvez devesse ir a uma analista, Íris cortou relações comigo. Não sabe nem quer saber se eu estou viva ou morta. Dói, mas fazer o que? É a escolha dela.

 Sozinha, num apartamento de 3 quartos com 2 banheiros sociais no Jardim Apipema. Muito grande para mim. Fiz uma suíte minha, o outro quarto fiz de gabinete de estudos. E com o terceiro quarto, fazer o que?

Saindo de uma relação amorosa que foi bom enquanto durou, ainda enroscada numa relação outra que me atormentou por 20 anos e que nunca foi bom mesmo antes de durar. Fazendo a minha passagem para a psicanálise, já nos meus cinquenta e poucos anos, sem filhos. Gostava de morar sozinha. A solidão não me atemorizava mas o tamanho do apartamento me fazia sentir dispondo de espaço em excesso. Foi quando uma amiga me sugeriu alugar o quarto que sobrava para um ou uma jovem estudante.

Em princípio, relutei. Dividir meu espaço com um estranho ou uma estranha? Finalmente cedi e a notícia foi parar na pós-graduação de Psicologia da UFBA, onde tenho amigos. No dia em que fui à F.F.C.H assistir a uma defesa de tese de uma paciente, meu destino foi selado para o bem. Encontrei por acaso a coordenadora da pós que foi minha contemporânea de faculdade. Só de lembrar me dá um frio na barriga. Hilka me disse que conhecia um estudante colombiano que talvez se interessasse por alugar o quarto e ficou de passar meu telefone para ele. A indicação de Hilka me dava uma mínima garantia. Ela me conhece e fez boas recomendações do rapaz. Então só me restava aguardar e rezar.

Nem aguardei, nem rezei. Talvez de modo que interessasse a Freud, deletei o assunto. Dias depois me liga um rapaz com forte sotaque cujo tom de voz, ainda que muito másculo, me fez pensar num menino. Um menino com algo de um certo desamparo estilo "A insustentável leveza do ser". Era o estudante de doutorado colombiano recomendado por Ilka. A simpatia já bateu por telefone. Convidei-o para almoçar para conversarmos e nos conhecermos melhor.

Chegou para o almoço pontualmente à hora combinada, vestido de modo esportivo casual, cabelos negros e encaracolados com muito brilho, talvez usasse um brinco na orelha. Falou comigo com seu sotaque enternecedor, àquela época ainda titubeando na conjugação dos verbos. Na verdade, seu Português era excelente para quem estava recém-chegado no Brasil.

 Contou-me que no lugar onde estava hospedado tinha um galo que cantava de madrugada. Rafael, esse é o seu nome, não gosta de ser acordado, quanto mais de madrugada, quanto mais por um galo. Se ainda fosse uma galinha..... Quando eu lhe disse que escreveria um contrato estabelecendo regras de uso da casa e dos utensílios da cozinha, fez um ar de quem se sentia magoado, mas aceitou. Meia hora de conversa e me perguntou quando poderia mudar para minha casa. Tomada de susto, fiquei sem saber se ele era um impulsivo contra-fóbico ou apenas um rapaz decidido.

Quando nos sentamos para almoçar, o tom contratual da conversa se arrefeceu. Pude saber de que cidade da Colômbia provinha, pude constatar quão inteligente e versátil era aquele rapaz com jeito de menino. Podia conversar de psicanálise, literatura, cinema, música e até esporte, com a maior desenvoltura. Comia com muito prazer, contou-me ser amante da gastronomia e adorar a comida brasileira. Ponto a seu favor. Acho esquisitas as pessoas que não apreciam uma boa comida. O seu sorriso, muito espontâneo, era de uma criança tímida se arriscando a ser peralta. Ao se despedir, me avisou que ligaria avisando precisamente o dia da sua mudança para minha casa.

Quando ligou, foi logo dizendo que faria a mudança na segunda-feira de carnaval. As diferenças idiomáticas não me permitiram explicar direito que o carnaval era uma mega festa com trânsito inviável para chegar de táxi ao Jardim Apipema. Resultado: ele ligou dizendo que estava vindo pela manhã e só foi aparecer à tarde, tendo gasto uma fortuna de táxi. Saiu todas as noites do carnaval, encantado com a novidade da festa. Certamente as particularidades do carnaval em Salvador são de deixar boquiaberto um estudante recém chegado de qualquer país. Ele se encantou com a variedade dos ritmos e com a espontaneidade do povo. Muito cedo Rafael começaria a se sentir em casa em Salvador.

Dei-me conta de que estava nutrindo um afeto maternal pelo rapaz quando chegou o seu primeiro dia de aula na pós-graduação em Psicologia. Ele mal pode disfarçar a sua apreensão e ansiedade. Perguntou-me com qual roupa seria apropriado comparecer à aula. Ajudei-o a escolher a roupa com cuidado, pedi à empregada que fizesse uma moqueca de peixe para celebrar a data. Ele se deliciou com a moqueca que estava experimentando pela primeira vez. Ao sair, visivelmente ansioso, eu lhe dei um beijo no rosto e lhe disse que podia contar comigo como uma mãe. Depois que ele saiu, enxuguei minhas lágrimas de emoção e aguardei, também ansiosa, o seu retorno da aula.

Assim se estabeleceu a gratificante interação do fim do dia entre nós: cada um contava ao outro como foi seu dia de trabalho. Rafael era um filho multifacetado. Se em alguns momentos mostrava-se desamparado pedindo colo e opiniões, em outros era extremamente auto-suficiente e independente. Sempre detestou ser cobrado. Logo estava enturmado com seus professores e colegas. Sem negligenciar os seus estudos, aos quais era muito dedicado, adorava a noite. Saía todo fim de semana para dançar, tomar uma cervejinha e experimentar a comida baiana.

Quando chegou 11 de março, dia do seu aniversário, não sei como nem por quê eu adivinhei a especialidade daquela  data. Perguntei se ele não queria convidar uns colegas para vir em casa comer um bolo com ele. Preferiu não, talvez envergonhado de contar aos amigos que era seu aniversário. Quando cheguei à noite do consultório acendemos a vela, cantamos parabéns e comemos o bolo. Era seu primeiro aniversário no Brasil e aquela modesta celebração foi tão importante que Rafa fez questão de guardar a vela como recordação. 

Entre nós, logo uma troca se estabeleceu. Se eu cuidava de Rafael lhe fazendo mimos e carinhos maternais e dando opiniões quando se dizia indeciso nas suas escolhas, Rafa cuidava de mim ensinando dicas de manuseio da internet e de aparelhos eletrônicos e fazendo o lugar de cavalheiro quando eu tinha coisas a resolver que demandavam uma presença masculina. Às vezes quando eu chegava cansada do consultório, encontrava uma comida deliciosa preparada por ele. É excelente cozinheiro. Conversávamos dos mais variados assuntos de igual para igual.

Enquanto seu Português não estava ainda cem por cento aprimorado, eu sorria de ternura com frases como: "Marcia, você pode me dar um remédio? É que acho que vou pegar uma GRIPA. Marcia, você me arranja uma CREMA? É que machuquei minha mão." Nas vezes em que me viu chorar ficava todo desajeitado e dizia: "Não, Marcia, por favor, TRANKILA!"

E assim fomos convivendo por dois anos. Cada vez menos inquilino, cada vez mais filho. A minha casa se enriqueceu com o viço da juventude de seus amigos e amigas. Rafa é muito sociável e sabe se fazer querido. Recebi com alegria como hóspedes vindos da Colômbia sua mãe, seu pai e duas tias. Pessoas adoráveis. Simples e amorosas. Não passa um Natal, um aniversário meu ou mesmo um fim de semana qualquer sem que a sua mãe não me telefone. Às vezes nos falamos pelo Skype.

Contudo, nem tudo são flores. Tivemos também nossos "arranca-rabos". Eu nem sempre sou uma pessoa fácil e uma vez repreendi o rapaz tão severamente que ele até chorou. Mas sempre fizemos as pazes. Rafa é muito generoso e grato. Também discreto. Não me lembro jamais dele curioso ou opinando sem ser solicitado, sobre a minha vida íntima. A gente se respeitava muito.

Se em casa era o filho querido, me fazendo a dádiva de exercer uma maternagem tardia que me enchia de júbilo, no meio acadêmico ele cada vez mais se firmava como intelectual e pesquisador competente e respeitável, tendo participação em eventos e congressos importantes. E foi assim que bateu asas. Com planos de voltar para Salvador, mudou-se temporariamente para o Rio para trabalhar com um pesquisador importante de lá. Chorei um lençol inteiro de saudades, mas compreendi e dei força para sua iniciativa. Antes de tudo queria que  Rafa crescesse profissionalmente e fosse feliz. Recebi sua visita algumas vezes e seu quarto continuava guardado à espera de sua volta.

Quem vai controlar o destino? Ainda mais de um jovem curioso por explorar novas possibilidades de vida. No Rio, Rafa conheceu uma bonita jovem paulistana, por ela se apaixonou, casou e fixou residência em São Paulo. Seu quarto aqui se manteve disponível para suas visitas, agora, na maioria das vezes, acompanhado de minha nora adotiva, também uma espécie de filha.

Já casado, veio aqui defender sua tese de doutorado na qual me agradece por tê-lo recebido na Bahia como um filho. Cada vez que Rafa vem a Salvador é uma enorme alegria para mim. Na despedida, um lençol de lágrimas. Agora já está próximo de fazer 40 anos, está fazendo pós-doutorado e para mim continua sendo o filho amado que quando precisa tomar uma decisão da qual se sente inseguro, pergunta: "que acha você?". Opino, mesmo sabendo que ele é um homem feito e que escolherá seguindo os ditames do seu desejo.

Agora, depois da Semana Santa, Rafa passou uma semana aqui comigo. A sua esposa que é uma executiva, veio passar só o fim de semana. Eles me levaram como convidada para comer uma deliciosa Maniçoba. Foi um programa muito agradável e fiquei contente de perceber que eles estão bem como casal. Há muito tempo não sentia meu filho tão perto de mim. Embora também trabalhando, fez questão de estar com todos os seus amigos e de comer "comida de boteco" que tanto gosta.

 Assistimos juntos a uma partida de futebol entre Brasil e Colômbia. Felizmente o gol saiu no finalzinho da partida,  para a Colômbia. Vibramos juntos. Conversamos muito e eu até esquecia das minhas dores quando acordava cedo para servir seu café da manhã. De volta para casa à noite me contava como foi seu dia. Como um cavalheiro resolveu para mim um "Perrengue" antigo com a GVT. Foram dias maravilhosos. No dia de sua partida acordamos de madrugada. Levei-o até o playground para tomar o táxi que o levaria ao aeroporto e aí vieram as lágrimas. Ele,   me abraçou desajeitado e disse: "não, Marcia, por favor, TRANKILA!"  Filho, biológico ou não, não importa a idade, não importa a distância, é sempre filho, por mais primoroso que esteja o seu Português.
                                                                                                            Marcia Gomes.