domingo, 18 de maio de 2014

18/05/14                 "MAIS  LOUCO  É  QUEM  ME  DIZ......"

Não faço parte do movimento "Luta Antimanicomial" . Penso que há nele uns tantos equívocos. Além disso, depois da minha militância de esquerda adolescencial, fiquei avessa a movimentos. Ainda prefiro a poesia que pode cantar o movimento do vento, o movimento dos corpos enlaçados dos amantes, sem qualquer militância.

Como já contei àqueles que leram minha crônica intitulada "Maria José"  (blog: blablablazista.blogspot.com.br ), apenas com quatro anos de idade, eu assisti aos enfermeiros do Juliano doparem e amarrarem com uma camisa de força uma jovem que se vestia com saia de cetim e blusa de lamê e lantejoulas. A jovem saiu para uma festa construída na sua imaginação. Quando voltou desfeita e esfarrapada é que foi trancafiada pelos enfermeiros. Essa jovem era minha tia. Como me esquecer disso?

Estou relendo Foucault com vistas a um labor que escapa do fazer clínico psicanalítico e descamba um pouco para a literatura. Releio "O que é um Autor?" , "História da Loucura" e "Os Anormais" . A crítica ao estatuto de "autor" reivindicando o direito de ser senhor do livro, numa imposição de suas pontuações, escondido sob a autoridade de um nome. A desconstrução da categoria "sujeito" enquanto um indivíduo inteiro, completo. Para Foucault o sujeito é somente um ser de discurso, que, sob a linguagem, se desvanece. A denúncia do biógrafo como fraudulento quando se arvora a ser detentor da verdade sobre o biografado, ao invés de ser um mero leitor de um discurso, entre outros. E, principalmente, a  crítica contundente ao rótulo "doença mental" como interdição que delimita policialescamente a fronteira entre razão e loucura. Ah, Foucault, felizmente esse grande transgressor que tentou dar voz aos deserdados.

Todos os dias penso na chamada "loucura". E, felizmente, converso com poetas. Cada vez procuro mais me aproximar deles. Deles, os leitores da alma desarmados de qualquer teoria. Numa dessas trocas de E-mail  chega um poema que me fez chorar copiosamente. É um poema sobre um "louco" de rua numa cidade do interior da Bahia no começo da década de 60.

 Naquela época, em cidades de interior não havia hospícios, muito menos psiquiatras. E os "loucos" podiam perambular pelas ruas, de certa forma como figuras folclóricas, de certa forma como parte da cultura popular. Ainda que abandonados à sorte, não seria essa condição mais humana do que a internação psiquiátrica? Pelo menos eram reconhecidos como parte do imaginário da cidade. Aqui em Salvador, cada vez menos podemos assistir a isso. São poucos os que ainda podem dar um prato de comida ou um cigarro ao nosso querido e silencioso "Samuca". Quantos de vocês recordam da "Mulher de Roxo", também silenciosa, perambulando pela Rua Chile, sem vergonha do batom vermelho extrapolando os limites da boca?

O que tanto me fez chorar no poema sobre o "louco" de rua? O corajoso e desamparado depor as armas do poeta. Leu no personagem a beleza de sua alegoria, destituído de quaisquer pretensões teórico-psicológicas ou filosóficas. E, como poeta, reconhece como legítima a sua viagem delirante, de certa forma se identificando com ela. Muito bonito, muito sensível.

O poema fala de um homem mal trapilho que anda na rua em marcha como se pisasse em tapetes vermelhos. No casaco andrajoso  dependura tampinhas de refrigerante, medalhas de santo, outros pequenos objetos em lata, que fazem o lugar de insígnias de um conde ou general. Assim o personagem marcha garboso em pose marcial. Sensível, o poeta conclama aqueles que escarnecem do "louco" a bater-lhe continência e abrir alas com toda a reverência.

Agradeço imensamente ter podido ler esse poema. Quando vejo os meus amigos politizados falando da defesa dos direitos dos trabalhadores, quando vejo os oprimidos pelo racismo levantarem a bandeira em defesa dos negros, quando vejo os empenhados em preservar o meio ambiente, quando vejo a defesa dos direitos das mulheres e das minorias em geral, acho tudo muito justo mas penso nos "loucos", que a eles mesmos, quase sempre, não podem defender. Quem os defenderá?

 Não creio que haja categoria de sujeitos vítima de maiores preconceitos. É muito comum se ver pessoas apontarem o dedo em riste discriminando pessoal e profissionalmente aqueles que tomam medicação prescrita por um psiquiatra. Para essas pessoas, a "tarja preta" se imprime ao usuário como rótulo de "doente mental" . Para essas pessoas, não se fica "louco". Para essas pessoas a "loucura" não é uma condição engendrada pelas relações sócio-afetivas. É-se "louco" como uma coisa intrínseca, maléfica e contagiosa como uma doença venérea. O seu portador pode até beneficiar-se de tratamento médico e psicoterápico mas tem que ficar excluído dos laços sociais. Quantas vezes, quando queremos desqualificar uma pessoa dizemos em tom de brincadeira: "você tá maluco, menino?" Quantas vezes, nós, os esclarecidos, nós os politicamente corretos, contamos piada de "maluco" nas rodas sociais? 

É, meus amigos, não me esqueço de minha tia.  Fora da crise era uma pessoa como qualquer uma de nós. Sensata, sensível, inteligente. Perfeitamente capaz de fazer escolhas e gerenciar sua vida. Fico muito triste quando vejo que os rápidos avanços na psiquiatria e até mesmo na psicanálise em alguns casos, devolvem às pessoas habilidades e capacidades, mas nem sempre lhes devolvem a respeitabilidade e o afeto destituído de preconceitos que merecem como cidadãos e sujeitos.

Por tudo isso, muito triste, vou ficando com os poetas, os músicos. Fico com Ney Matogrosso: "Mais louco é quem me diz que não é feliz."
                                                                                Marcia Gomes. 

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