segunda-feira, 14 de abril de 2014

06/04/14                   O  TEMPO. ALGOZ? COMPANHEIRO?

Fiz uma viagem no tempo. Já fiz muitas. Inúmeras. Mas depois de completados os sessenta anos, muito significativa, a de ontem. Me recordo que no final de 2012 participei de uma confraternização de Natal com um pequeno grupo de colegas de turma do curso de Psicologia. Colegas com os quais mais convivi. Não houve tempo hábil para localizar os demais. Foi um fim de tarde num barzinho aconchegante. Recordo que fiquei muito feliz em rever aquelas pessoas. Foi muito bom aquele papo tipo hora da saudade. Resultou em mais um encontro menor, troca de e-mails, encaminhamento de paciente e  ganhei leitores assíduos para o meu "Blá, blá, blá.....". Indiscutivelmente foi uma oportunidade ímpar de matar as saudades daquelas pessoas tão queridas. Eu não havia ainda feito sessenta anos.

Talvez, bem antes de 2012, encontro por acaso no banco uma colega da turma um ano anterior à minha. Pessoa adorável, com quem eu talvez tenha feito junto algumas disciplinas, o papo rendeu. A fila do Banco do Brasil costuma ser grande. Acabei contando da minha passagem para a psicanálise. Para quem me conheceu estudante, fervorosa devota do behaviorismo, saber que ocupo hoje o lugar de analista é uma espécie de erupção vulcânica. Ela me contou que tem um grupo de colegas que se reúne regularmente para estudar e manter acesa a chama do afeto. Citou o nome de algumas pessoas do grupo. Mostrei-me interessada pelo assunto, disse que tinha vontade de rever aquele pessoal. A colega adorável me disse que talvez um dia pudesse me convidar para visitar o grupo. Nossos laços se estreitaram um pouco mais. Lembro que enviei para ela meu trabalho depoimento de passagem para a psicanálise. Lembro principalmente de um dia em que eu passava um período difícil e ela me ligou. E foi solidária. E me escreve de vez em quando retornos muito afetivos para o que lê no meu "Blá,blá,blá.....".

Quinta-feira passada, porque não trabalho neste dia da semana, estava eu em casa estudando e meditando sérias bobeiras do que diz o Senhor Lacan,  e a colega adorável me liga convidando para ir ao encontro do grupo que foi ontem. Ontem, agora que já vou completar sessenta e um anos. Agora que do ano passado para cá, tenho me colocado a questão do envelhecer confrontada com as escolhas que fiz, confrontada com o tempo que resta para reinventar escolhas, confrontada com o fato de que certas coisas não dá mais pra escolher, o que me dá às vezes um certo conforto com a sensação "agora é usufruir o que ficou de bom", o que me dá às vezes uma certa inquietação com a sensação "nossa, como pude perder tanto tempo com bobagem?"

Fiquei feliz, agradecida e ansiosa com o convite. Feliz, ao constatar o quanto mudei. Se eu ainda fosse aquela behaviorista arrogante de nariz empinado, jamais me disporia a estar com aquele grupo. Agradecida, porque achei de enorme generosidade o gesto da colega adorável de me incluir por um dia na rotina de encontro de amigos. Ansiosa porque me perguntei como elas me receberiam. Fora a minha colega adorável em cuja casa se realizou o encontro, as demais colegas, com pouquíssimas exceções, eu não vejo desde 1976, quando nos formamos. Algumas delas eu não me recordava e com nenhuma delas privei de intimidade no tempo de estudante em que meu nariz mais parecia um órgão genital masculino ereto, tamanha era a prepotência de behaviorista sabichona trancafiada num pequeno grupo de outros tirados também a sabichões. Eu estava feliz, agradecida e ansiosa.

Fiz uma viagem no tempo. Significativa. Depois de ter sessenta anos. Era um grupo de umas seis pessoas talvez. Todas mulheres. A Psicologia carece dos varões. Fui recebida com abraços calorosos e abracei calorosamente as pessoas. Uma delas, uma médica muito simpática era mesmo desconhecida. Uma outra eu recordei de pronto a fisionomia. Houve outra, que fui me dando conta de quem era ao longo da conversa. Não importa. De imediato estávamos todas conversando animadamente e rindo.

 Começamos a tecer o fio das recordações citando nomes de colegas e professores, experiências vividas. Conversando, eu pensava como pode o tempo colocar uma nova fisionomia de mulher madura superposta àquela de garota adolescente sem que uma apague a outra? E as vozes, então? Voz não envelhece? Como eu estava feliz participando daquela troca! Ao mesmo tempo me dava conta das muitas coisas que elas viveram que eu não vivi. Não me recordo de muita gente e não é por falta de memória. É que eu não estava atenta. Sabem uma coisa que muito me impressionou naquele grupo? Embora estudem juntas, nenhuma se fez reconhecer pelo lugar de intelectual que ocupa. Algumas falaram de si, coisas pessoais quase íntimas, com o maior desprendimento. Era um grupo de senhoras amigas que me incluía sem quaisquer cerimônias. Algumas são psicanalista, outras não. Isso não estava em questão. Algumas são avós, casadas, solteiras, viúvas, separadas. Isso também não estava em questão. A questão é se querer bem, tecer artesanalmente um laço mais de quarenta anos depois.

A questão é o tempo e o que se faz dele. Mexeu comigo saber que três dos membros do grupo já se foram. Falaram de modo tocante como se deu e ainda está se dando a elaboração do luto. Nós, aquelas jovens, quase ainda adolescentes que queriam mudar o mundo, nos reunimos numa tarde de sábado e falamos também da morte de professores e colegas como uma coisa que não está mais distante de nós.

Vejo que já escrevi muito. Creio que na escrita não estou acertando o tom para dizer o que essa experiência representou para mim. A minha colega adorável veio me trazer de carona em casa. Foi uma conversa aberta, honesta, pessoal. Muito longe estávamos das dissimulações que cercam certos encontros sociais. Me despedi pensando que a questão é o tempo e o que se faz dele. Me despedi satisfeita com os meus sessenta anos. Precisei deles para me dispor a participar e enxergar beleza num encontro como aquele. Precisei deles para perceber quão sofisticado é ser simples e quão complexo é cultivar laços que se constituíram há mais de 40 anos e que resistem fortes à toda diversidade. Precisei deles para deixar coexistindo em mim o "agora é usufruir o que ficou de bom" e o "nossa, como pude perder tanto tempo com bobagem?". Preciso deles a cada dia porque a questão é o tempo e o que se faz dele. Algoz? Companheiro?
                                                                             Marcia Gomes.
        

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