domingo, 6 de abril de 2014

23/03/14    CRISE  COM  A  PSICANÁLISE?  Eu quero é tirar meu bloco da rua.

Faz quase um mês. E lá se foi o carnaval. O antes e o depois. Ainda no fim de semana passado o bloco dos desencantados parecia querer persistir na rua desafiando o calendário. O computador deu pane e não pude escrever nem enviar minha crônica dominical. Fiquei em falta com os leitores aos quais peço desculpas. Vivi uma situação difícil, crítica mesmo, e posso dizer que fui salva por uma amiga muito querida com quem convivo há 48 anos.

Conheci essa amiga no colégio. Eu, adolescente, militante de esquerda e ela furadora de greve estudantil. E éramos amigas. Muito amigas. Do peito. Ela, negra, filha de operário, eu mulata tirada a branca de classe média filha de médico. E éramos amigas. Muito amigas. Do peito. Ela, avessa às complicações da poesia, muito ingênua sobre sexo, eu já fazendo minhas incursões na literatura e no universo dos rapazes. E éramos amigas. Muito amigas. Do peito. Passaram-se 48 anos e a danada me prestou ajuda na hora certa. Vivemos juntas 48 carnavais. 

Refeita dessa experiência crítica e para sempre enternecida e grata à minha amiga, foi na quarta-feira passada, dia 19, que me dei conta que felizmente já estou no depois do carnaval. A constatação se deu como um passe de mágica com um telefonema de meu filho adotivo. Foi simples. A muitos pode parecer nada especial. No telefonema feito de São Paulo ele me avisa que vem aqui ficar comigo em abril. Eu? Boba de alegria. Que eu adotaria um filho eu fiquei sabendo num dia desses qualquer quando fui assistir a defesa de tese de uma paciente. Saí da defesa de tese sabendo que um jovem psicólogo colombiano viria morar na minha casa. Filho ganho, amigos frequentando minha casa enchendo-a de juventude e a chegada da nora depois das muitas namoradas que passaram por aqui. Agora casado morando em São Paulo e já fazendo pós-doutorado, Rafa me acrescenta motivos para ser mais feliz. Pois foi o seu chamado na quarta que sinalizou que já é hora de tirar o bloco dos desencantados da rua.

Desde dezembro eu vim ensaiando desfilar no bloco. Foi a queda do movimento na demanda de pacientes própria do fim do ano, relacionamentos que se desfazem, a consciência do envelhecer chegando, as limitações que o corpo vai nos impondo, distância geográfica dos entes da família e  a  decisão de tirar férias da minha crônica dominical e da psicanálise. Em nome de descansar e cuidar da saúde me mantive por três meses afastada de quaisquer leituras e discussões em psicanálise. Um certo esboço de desencanto com a psicanálise me tomou. É que eu não sabia que se deixar fisgar pela psicanálise é como ter jaca como fruta preferida. É uma delícia mas tem que topar limpar o visgo. E que é melhor limpar o visgo do que ficar sem comer a jaca.  Jaca pode ser uma fruta que não está na moda mas é minha paixão.

Filhos, mesmo os adotivos, parecem saber a data certa de telefonar. E eu fui chamada no dia em que recomeçaria um seminário de psicanálise que frequento há mais ou menos 10 anos. Pouco tempo, diga-se de passagem, para se tornar uma psicanalista reconhecida no mercado.Um pouco desencantada, eu estava propensa a não ir ao seminário. Ainda mais com probleminhas de saúde. Ainda mais que às vezes quando estou menos "desejosa" receio que não haja  futuro muito promissor para a psicanálise. De uma possível crise na psicanálise neste mundo cruel globalizado não é todo mundo que quer falar. Há a pressão mercadológica devoradora das terapias "focais" de origem norte-americana.Mas sobre isso quem, como, quando pode falar?  Quem quer saber de visgo de jaca quando há frutas mais modernas e de fácil consumo disponíveis nos supermercados?

Tomada pela alegria da chamada de Rafa decidi comparecer ao seminário mesmo sentindo dor. Decisão mais acertada do que esta não haveria. A grande satisfação no reencontro com os colegas. Botar os assuntos em dia, a conversa gostosa sobre o que cada um fez nas férias. A carona solidária de Terezinha e seu marido. E, muito importante, as colocações promissoras do próprio seminário. Quando a gente gosta de jaca a gente gosta de jaca. E gostar de jaca é irreversível. Fazer contato com as questões que vamos trabalhar este ano. Vislumbrar discutir autorizar-se numa posição sexuada em paralelo com autorizar-se analista. Nada mais instigante. O entusiasmo resgatou o meu desejo e quase esqueci da dor. Me comove sentir-me movida por uma causa. A psicanálise me causa dê no que der. Saí do seminário com ânimo revigorado. Indiscutivelmente ocupo o lugar de analista e isso não é sem consequências. É preciso arcar com o visgo da jaca. Disso não quero nem posso abrir mão. Devo abrir mão, sim, do bloco dos desencantados. O carnaval já passou. Mais do que hora de retomar o trabalho. Eu quero é tirar meu bloco da rua.......

                                                                                                Marcia Gomes. 

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