sábado, 2 de agosto de 2014

03/08/14                                       NEGROR  DOS  TEMPOS

Não durmo,mas acordo com as galinhas. Mas as galinhas não acordam mais na paisagem urbana de Salvador. Não há galinhas na paisagem urbana de Salvador. Na paisagem urbana de Salvador, às vezes penso, há apenas as desvantagens de uma cidade grande, sem que possamos usufruir das vantagens. Há violência, trânsito congestionado e um precoce ruído reverberativo de carros assaltando as ruas, na aurora. Onde a aurora de "A Morte do Leiteiro" de Drummond? Não há mais leiteiro, e os assaltos matinais, na sua atrocidade, não permitem aos poetas enxergar a beleza trágica da mistura de tons do sangue com a brancura do leite, compondo a cor do amanhecer. Não há brancura. Há o negror dos tempos.

Um gotejar pronunciado e insistente na pia da cozinha do meu apartamento. Preciso chamar o encanador. Mas não há encanador a chamar nos primeiros tons da aurora. Então por enquanto me conformo com o irritante gotejar. Até gosto. Cada gota que pinga me distrai do texto que vou inventando. Cada gota que pinga quase me distrai de pensar na dor intolerável daqueles que perdem entes queridos, casas, bens, dignidade, esperança, tudo. Aqueles que perdem tudo nos bombardeios em Gaza. Cada gota que pinga quase me distrai da imagem de corpos destroçados em Gaza que vi no Facebook.

Nessa época de globalização o tempo se torna inclemente na velocidade com que passa. As postagens no Facebook são como uma caixa de ressonância dessa velocidade cruel. Estamos há uma semana apenas da proliferação de postagens em homenagem a Suassuna. Estamos há uma semana apenas de quando eu pude me condoer com a condição de vigia noturno de prédio do personagem da minha crônica, e me deixar tocar com o seu discurso poético sobre Suassuna. Estamos há uma semana apenas de quando várias pessoas postaram minha crônica no Facebook. Parece que em questão de uma semana não há mais como pensar com dor na morte de Suassuna, não há mais como pensar com dor que um homem sensível é vigia noturno de um prédio.

Uma dor muito maior, fazendo em farrapos a dignidade de cada um de nós, ocupa as postagens do Facebook. Fotos de corpos destroçados, palavras de ordem, o apelo dramático e emocionado do Papa Francisco, o poema doído e sensível da colega Christiane Glasner . Todas essas coisas e muito mais para quem suporta acompanhar os noticiários, nos dizem que temos que nos defrontar com a nossa impotência, com o inabordável escândalo do crime de guerra, com a inoperância dos expedientes diplomáticos, com a indagação de por que evoluímos tanto em tecnologias, em conquistas da ciência, se estamos perplexos, desamparados, violentados pelo terror que se passa em Gaza.

Quase me sinto envergonhada de ficar curiosa a respeito de como está sendo a FLIP este ano, em homenagem a Millôr Fernandes. Quase me sinto envergonhada de ficar alegre porque emprestei os livros de Manoel de Barros ao personagem da minha crônica. Não me interessam muito as sutilezas políticas das razões da guerra. Numa guerra não há sutilezas. Não me importa muito que se trate de um confronto injusto e desigual entre israelenses e palestinos. Entretanto penso como um povo de Israel que foi tão perseguido e estigmatizado, pode se tornar tão violentamente cruel. 

Penso nas pessoas, vítimas inocentes de um confronto cujas razões às vezes até desconhecem. Penso no povo. O povo que em geral se torna bode expiatório de correlações de forças, de disputas de poder que não lhe dizem respeito, e sobre o qual recai toda a desgraça. Sinto uma compaixão envergonhada das crianças que perdem seus pais, seus lares.

 Penso mais uma vez na "Psicologia de Grupo" de Freud. Vi no Facebook algo dito assim: "Gaza somos todos nós". Sim, estamos todos implicados nesta guerra cujas consequências traumáticas serão inapagáveis na vida de cada sujeito que a sofre. Estamos implicados e não podemos tapar os ouvidos aos estampidos das explosões por mais longe que pareçam estar de nós. Não estão longe os estampidos. Estão dentro de cada um de nós clamando por um posicionamento de olhos abertos já que sabemos que Gaza pode ser qualquer lugar em que estejamos, a qualquer hora. A qualquer hora que somos intolerantes com nosso semelhante, a qualquer hora que estigmatizamos o diferente, a qualquer hora que baixamos a cabeça à lei do mais forte.

Os pactos de cessar fogo não foram respeitados. A emoção me toma e mal posso continuar o texto. Vi na televisão uma criança que catava livros que sobravam no meio dos escombros. Normalmente não gosto, e agora quase não quero assistir televisão. A manchete sensacionalista que esmaga a subjetividade. A manchete sensacionalista que às vezes na sua repetição sem crítica, sem reflexão, coloca o risco de nos fazer pensar: "Isso é natural e não me diz respeito".

 No próximo sábado, dia 9 de agosto, fará um ano do falecimento da minha querida amiga Dona Ruth. Se não me engano, em 2012, foi com um comovido relato da história de amor de Dona Ruth que passei a enviar regularmente aos amigos o "Blá, blá, blá domingueiro...." Bonito tempo aquele em que Dona Ruth encantou o Professor com um gracioso rodopio em uma praça no Ceará. Muita saudade da alegria juvenil de Dona Ruth, do seu entusiasmo pela sua corajosa e transgressora história, do seu papel tão importante como aglutinadora de uma família de 9 filhos com seus rebentos. Filhos, alguns poetas, que aprenderam com ela a cultivar a esperança num mundo melhor e a se enternecer com coisas simples como a beleza do pouso de um beija-flor, como a alegria infantil de pular uma onda na praia de Itacimirim.

 Quase sinto um alívio de Dona Ruth não estar mais entre nós para não presenciar o constrangimento que nos abate com o que acontece em Gaza. Ela ficaria consternada com esse dramático estado de coisas. Penso que a homenagem póstuma que posso prestar a essa querida amiga, é conclamar a todos para se posicionarem firmemente contra o descalabros dessa guerra. Conclamar a todos para sermos vigilantes no nosso cotidiano, nas nossas pequenas ações em relação a nossos semelhantes, para não contribuirmos com nossa omissão, para agudizar o negror dos tempos.

                                                                                                         Marcia Gomes.

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