domingo, 17 de agosto de 2014

17/08/14                                      TENTAR  SAIR  DE  CENA

Um luto pudico me inibe de falar da perda de Eduardo Campos. Só me ocorre dizer que quando perdi meu pai ele contava apenas 45 anos. Entre o diagnóstico e o fim foram apenas treze dias de insuportável dor. Mas dor não se coloca na balança. Como saber o peso da dor dos entes queridos de Eduardo Campos?  Um homem com filhos pequenos, honesto, competente, neto de Miguel Arraes e jovem, sair de casa em missão de trabalho e não voltar mais, é inqualificável! Muitos, nele depositaram a esperança de um Brasil melhor. A morte imprevisível, precoce e trágica me deixou com a sensação de o país ter sido traído pelas contingências, como quando perdemos Tancredo Neves e Ulisses Guimarães.

Com esse acontecimento dou-me conta de que há alguns domingos venho falando sobre a morte e o morrer. Rubem Alves, João Ubaldo, Ariano Suassuna. Perdas significativas para o povo brasileiro. Quando começamos a envelhecer a morte já nos parece alcançável e então nos toca mais? Sobrevivermos àqueles que se vão e nos são tão caros, causa uma espécie de constrangimento dolorido? 

Talvez não tão importante para o povo brasileiro, mexeu muito comigo a morte por suicídio do ator americano do filme "Uma Babá Quase Perfeita". Não presto muita atenção a noticiários mas fiquei sabendo que ele tinha envolvimento com drogas, álcool e principalmente que estava muito deprimido. Acho lamentável que a informação sobre o envolvimento com drogas e com álcool, coloca nas entrelinhas da notícia da mídia algo cruel assim: "Estão vendo vocês, ele se suicidou porque não tinha o juízo perfeito." A gente sente o tom de acusação da imprensa com o dedo em riste. Eu não sei nem me importa saber dessa maneira, se ele tinha o juízo comprometido ou não. Quem de nós tem o juízo perfeito?

A mim importa saber que assisti ao filme e o personagem feito por ele me enterneceu muito. É um pai um tanto desajuizado e transgressor, que num processo de divórcio está legalmente proibido de estar com os filhos, a não ser na presença da mãe que é uma educadora rígida e autoritária. Então esse pai, para estar diariamente com as crianças, cria o bem construído estratagema de se vestir de mulher e de conseguir ser contratado como babá pela ex-esposa. Não gosto muito de comédias, mas essa foi para mim comovente, pelas embrulhadas em que o pai se mete por amor aos filhos. O desempenho do ator é muito bom. Um ator excelente, que a despeito de envolvimento com drogas e álcool e o que mais quiser divulgar a mídia devassando sua privacidade, teve talento para fazer rir o mundo inteiro e sobretudo sentir muita ternura por aquele pai tão amoroso.

 Ao que parece, ao contrário da maioria das pessoas, que por motivos religiosos ou não, pensam que devemos viver sob quaisquer circunstâncias, tenho um enorme respeito pelo gesto suicida. Dizer do meu respeito muito longe está de fazer apologia do suicídio.  Somos, felizmente, quase todo o tempo, tomados pelo movimento de preservação da vida, particularmente quando ocupamos o lugar de psicanalistas. Trabalho em prol da preservação da vida. Mas não quero falar aqui do meu trabalho. Não cabe fazer pontuações psicanalíticas sobre o suicídio enquanto passagem ao ato. Quem quiser saber sobre isso é só ir a Lacan pelo menos no Seminário livro 10 "A angústia". Aqui no "Blá, blá, blá...." quem lê a minha escrita, são pessoas que fazem interlocução com Marcia enquanto sujeito que pensa sobre seu cotidiano e que sobretudo dele também padece e usufrui. É comigo enquanto pessoa que os meus leitores se relacionam. Por isso, não quero e não cabe aqui fazer considerações teórico-técnicas.

Mas não sei se pelos ossos do ofício, tenho uma aguda consciência de que há estados de angústia tão dilacerantes,  que tornam difícil ao sujeito vislumbrar outra saída, senão o suicídio. Não julgo os suicidas. Não penso que eles poderiam ter feito isso ou aquilo para sobreviver, tampouco os considero necessariamente desequilibrados, covardes ou egoístas. Quantos homens sábios, brilhantes, sensíveis ao longo da história da humanidade, ficaram sem qualquer outra saída plausível?  Penso que há momentos que a "pulsão de morte" prevalece e isso deve ser de uma incorrigível solidão. Uma solidão sem apelo possível. Uma solidão de angústia extremada que nós, que estamos do outro lado, do lado da "pulsão de vida", não podemos nem de longe avaliar. Então, talvez nos defendendo do suicida que há dentro de cada um de nós, julgamos o outro e o recriminamos por não suportar o insuportável.

A dor da perda de alguém nessas circunstâncias deve ser intolerável. Talvez por isso, numa complicada elaboração de luto, recorramos a responsabilizar o ente perdido pelo "gesto impensado". Será que foi tão impensado assim? Será que não pediu socorro? Será que quando o ente perdido falou em suicídio não desqualificamos a sua fala tomando-a como uma mera chantagem emocional? E a nossa responsabilidade, onde fica?

Penso que antes de julgarmos num "só depois" quem põe fim à própria vida, devemos nos perguntar o que temos feito por aqueles que estão angustiados ou deprimidos. O que temos feito pelos que se desestabilizam emocionalmente. Ao invés de censurarmos aqueles que "optam" por sair da vida, poderíamos nos perguntar o que temos feito em prol da preservação da vida.

 Tenho visto que infelizmente, mesmo nós, os da área psi, fugimos da dor como o diabo foge da cruz e, às vezes, nos permitimos ajudar a um amigo que está deprimido somente se, estando conosco, ele aceitar fazer um "semblant" alegrinho. Quantas pessoas angustiadas e deprimidas fogem mais ainda de contatos sociais temendo serem inoportunas ou indesejáveis na sua tristeza, no seu mutismo ou mesmo no seu sono persistente?

 Sob os mais diferentes pretextos, fugimos dos deprimidos e os rotulamos como pessoas que não querem se ajudar. Numa sociedade globalizada onde prevalecem as especializações, quem quer chegar perto de alguém que está desestabilizado emocionalmente? Costumamos dizer : "Ah, isso é coisa para profissionais, para especialistas". Às vezes, queremos nos distanciar tanto, que sequer reconhecemos como nosso dever recomendarmos a um amigo em sofrimento psíquico, que consulte um especialista.

Às vezes penso, que não há algo sujeito a mais preconceito e discriminação do que o sofrimento psíquico. Preconceito e discriminação sem direito de defesa. Outro dia uma colega numa instituição psicanalítica que frequento, relatou ter visto médicos dizerem de pacientes que padecem de doenças psicossomáticas: "Não é nada não. É só psicológico." Que reducionismo!! Que ignorância!! Tem algo mais estarrecedor do que um psiquiatra, se sentindo molestado no seu sono, ignorar o apelo que o familiar de um paciente em agudo sofrimento, precisa fazer numa madrugada? Tem algo mais estarrecedor nos dias de hoje, que uma mãe internar numa clínica psiquiátrica para lá viver para sempre, seu filho, pacífico, inofensivo, porque foi submetido a um rótulo que o coloca como doente mental, portanto como mal visto nas rodas sociais que ela frequenta?

 Como é comum vermos familiares e amigos de pessoas em sofrimento psíquico usando das mais mirabolantes estratégias de evitação! Numa sociedade onde prevalecem valores como sucesso profissional e produtividade, tornou-se legítimo, adequado e normal recusarmos socorro a alguém próximo em agudo sofrimento psíquico porque temos uma reunião, porque temos que participar de uma defesa de tese ou mesmo porque temos que ir ao teatro.

O "modismo" das chamadas "neurociências" nas suas tendências organicistas, só faz piorar esse estado de coisas. Se o sofrimento psíquico é de natureza orgânica, um mero desarranjo de neurotransmissores, então estamos liberados de nossa responsabilidade social diante daqueles que sofrem. Que vão procurar um médico que lhes prescrevam a medicação adequada e nós podemos dormir nosso sono tranquilo.

A cruel sociedade globalizada onde a singularidade é desqualificada em prol dos ideais de sucesso a qualquer preço, onde estamos todos com pressa para provar que somos competentes e bem remunerados, a ideologia do prazer, da juventude e da beleza física, da felicidade custe o que custar, a quase imposição de estarmos sempre bem e sem dar trabalho ao outro, a proliferação da propaganda na mídia do modelo inalcançável de completude, tudo isso a meu ver conspira contra e ameaça a integridade das almas mais sensíveis, daqueles que se aventuram a fazer escolhas fora dos padrões vigentes e a apostar em causas consideradas socialmente desvantajosas.

Dizendo o que penso, não quero culpabilizar a nenhum de nós que temos ou tivemos pessoas angustiadas, deprimidas ou desestabilizadas emocionalmente no nosso seio familiar ou no nosso círculo de amigos, por ter se omitido. Reconheço que o sujeito que sofre também está implicado no que lhe acontece, e que às vezes não sabemos nem temos o que fazer. Muitas vezes somos confrontados com a impotência. Há um impossível incontornável. Mas temos que lidar com isso sem que precisemos para nos defender, acrescentar mais dor àquele que sofre, fazendo julgamentos cruéis de quem na sua solidão aterrorizada por fantasmas invencíveis, não teve outra saída senão tentar sair de cena.

Meu apoio, minha admiração e solidariedade a familiares, amigos, psiquiatras e psicanalistas que exercem seu esforço incansável, apostam acima de tudo que vale preservar a vida de cada sujeito que sofre, contribuindo pessoal e profissionalmente para que tenha uma qualidade na sua existência que justifique o desejo de nela se manter. Podem triunfar ou fracassar na sua empreitada, sobre isso não podem ter controle. Mas com certeza não tentaram sair de cena.
                                                 Marcia Gomes.

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