sábado, 9 de agosto de 2014

10/08/14                            EM  MAR  REVOLTO

Íamos de saveiro. Nossa mãe quase em trabalho de parto. Nosso pai, morando em São Paulo tentando se estabelecer profissionalmente por lá, não pode vir assistir ao nascimento de sua filha caçula. Sandra, minha irmã mais velha, eu, Lula, meu irmão menor e nossa mãe quase parturiente, todos num saveiro saindo de Taperoá a caminho de Salvador.

Quando passamos por perto de Morro de São Paulo, o saveiro subia e descia ao sabor das ondas ferozes, em meio a uma tempestade. O mar encapelado não dava trégua. Que sentimento nos tomava naquela ocasião? Ver a nossa mãe com a barriga na boca, deitada mal acomodada entre sacos de cacau, desamparada sem saber se chegaríamos a tempo em Salvador. A voracidade das ondas encharcava a todos. O saveiro jogava nos deixando muito tontos. O cheiro de cacau aumentava a náusea. Uma mulher, de uma solidariedade imprudente, nos ofereceu uma moqueca de peixe embrulhada numa folha de bananeira fazendo-nos a todos levar a náusea às vias de fato.

Eu devia ter uns cinco anos. Acho que é essa a diferença de idade em relação a Lily, minha irmã caçula que estava a caminho do mundo dentro do saveiro. Lembro que me condoía vendo o sofrimento de nossa mãe, e, embora não fôssemos crédulos, rezava fervorosamente a São Brás, padroeiro de Taperoá, pedindo a graça de chegarmos a tempo, para eu não ter uma irmã ou irmão nascido no meio do mar, nem Taperoense, nem soteropolitano.

Aquela viagem foi uma espécie de pesadelo com o sabor de aventura. Parece que a aventura sempre povoa a cabeça das crianças, para fazer frente ao trauma. Lily nasceu no Hospital Santa Isabel. Lilyana, o nome da minha linda irmã caçula. De todos os irmãos, a mais bonita. Nasceu com olhos castanhos esverdeados, com traços delicados puxando mais pelo lado de nossa mãe.

Semana passada, depois de alguns meses sem contato, falei com ela ao telefone. Lily, talvez pelo encapelado do mar na véspera do seu nascimento, ou melhor, talvez pelo sabor de aventura que cercou aquela viagem, trilhou um destino aventuresco, muito particular. Adora trilhas. Mora em um sítio em Rio de Contas na Chapada Diamantina, tão distante da civilização que lá no seu sítio não pega celular e não tem telefone fixo, razão pela qual passamos meses sem nos falar. Detesta computador e não faz a menor questão de aprender a manejar. Há uns cinco anos não vem a Salvador e não tem planos de vir por enquanto. É um "bicho do mato", como faz questão de se denominar.

Está num muito feliz segundo casamento, tem três netas e um neto e um filho "temporão" de 14 anos que se chama Amon. Amon é um rapazinho muito inteligente e sensível, como os pais, afeito às coisas da natureza. Tem duas éguas e oito gatos. Entende de ervas e plantas em geral, e participa ativamente do cultivo da horta.

Quando ouvi a voz de minha irmã ao telefone senti um nó na garganta e a voz embargada. Repeti mais de uma vez que a amo muito. Quando a gente começa a envelhecer, tem uma certa urgência de dizer, de não deixar as coisas passarem. Sem dúvida Lily é dos meus irmãos aquela com quem cultivei uma cumplicidade maternal. Maternal, pelos anos que nos separam e pelos cuidados de irmã mais velha que sempre tive com ela. Cumplicidade, porque Lily fez escolhas tão transgressoras e alternativas, contrariando, de certo modo, as expectativas de nossos pais, que escolhi fazer esse lado cúmplice supondo talvez que ela precisasse desse apoio, para suportar a onda encapelada que tentava empurrá-la para o lado contrário do seu desejo.

Foi uma criança meiga e muito sensível. Um pouco triste, talvez. Sempre muito observadora e concentrada, às vezes passava longo tempo brincando sozinha, entretida com os detalhes de uma folha ou com os volteios silenciosos em bonita coreografia de peixes no aquário. Gostava muito de mexer com argila e esculpia panelinhas, animais, bonecos aos quais dava vozes e vida.

Já na puberdade começou a esboçar seus dotes artísticos. Pintava telas muito bonitas e foi premiada em concursos. Fazia teatro no colégio e dançava. No ano em que nosso pai faleceu resolveu viajar pelo Brasil afora de carona com uns amigos. Cedo saiu de casa trilhando um caminho de interesse pela preservação da natureza. Por longo tempo sobreviveu de fazer um belo artesanato. Nesse percurso transgressor, às vezes incompreensível para nossa mãe, mantinha-se preservada a nossa interlocução e muitas vezes tentei ser mediadora em conflitos familiares.

Quando ela mudou-se com o marido para Rio de Contas, várias vezes fui até lá visitá-los. Uma linda cidadezinha com ares coloniais, clima de montanha, muita cachoeira e usufruir do convívio com Lily e meu cunhado. Experimentar a sua deliciosa comida natural, me encantar com sua horta e seu jardim. Lily vive de plantar e de conceber e preservar lindos jardins para os moradores da cidade e regiões vizinhas. Conhece e cultiva muitas variedades de orquídeas. Tudo que ela faz é com gosto e desejo.

 Agora já fica mais difícil para mim encarar uma viagem de nove horas. Como não dirijo, preciso ir de ônibus. Então uma longa distância se estabeleceu entre eu e Lily nesses últimos anos. Convido-os insistentemente para virem com Amon a Salvador, mas adiam, avessos que são à vida urbana no que tem de burburinho, desrespeito à natureza, violência etc e tal.

Aí fica a saudade e a nostalgia da minha querida irmã caçula. Fica o respeito por nas condições mais adversas, não ter aberto mão do seu desejo. Fica o carinho por essa pessoa causada pelo amor à natureza, com um estilo de vida tão diferente do meu, tão desapegada de quaisquer bens materiais, tão afeita à calmaria do campo. Aqui registro meu amor por ela que escolheu caminhos tão pouco convencionais quanto quase nascer dentro de um saveiro, em mar revolto.
                                                                               Marcia Gomes.    

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