domingo, 12 de julho de 2015

12/07/2015                                    LUTO,  LUTA.

Hoje acordei sem vontade de escrever crônica. Apenas conto em poucas palavras uma experiência que tive ontem, dedicando esse relato a todos aqueles que foram vítimas diretas das atrocidades do golpe militar de 64, ou que tiveram familiares, amigos, companheiros, violentamente perseguidos, presos, torturados, assassinados e desaparecidos por defenderem um Brasil onde os direitos humanos fossem respeitados, onde respeitando-se a diversidade subjetiva de cada um, tivéssemos igualdade de direitos sócio-econômicos para todos. Dedico esse pequeno relato a todos aqueles que viveram ou ainda vivem o luto por seus entes queridos que nas condições mais adversas, jamais abandonaram a luta por um país mais digno. Se hoje tenho a liberdade de falar sobre essas questões, tenho uma enorme dívida de gratidão aos brasileiros que construíram a derrubada do golpe de direita que aconteceu em 64. Só de pensar que há pessoas falando em retrocedermos à época da intervenção fascista das forças armadas, tremo de nojo, tremo de horror.

Não vou escrever sobre política. Cada vez menos, gosto de tratar de política. Apenas exponho minhas opiniões para aqueles que compartilham comigo a simpatia companheira pelos inúmeros brasileiros que são ainda socialmente desprivilegiados, e sofrem a dor de serem discriminados, estigmatizados, por serem pobres, negros, mulheres, deficientes física ou psiquicamente ou até por serem idosos. Não entro em embates políticos. Talvez devesse até entrar, mas me sinto cansada. Acho que por trás dos argumentos que se colocam nas discussões, o que está em jogo são os interesses da classe social à qual pertence ou aspira pertencer aquele que está argumentando. Na minha modesta opinião, a defesa dessa ou aquela ideia nas conversas sobre política passa por uma questão ideológica de origem social que transcende argumentos. Vou escrever sobre a dor que por anos a fio atravessou uma família inteira.

Pois é. Ontem voltei a assistir no canal Arte 1, o filme documentário intitulado "Cabra Marcado para Morrer". O filme conta a história de João Pedro e sua família. João Pedro era um cabra paraibano casado com Elizabete, com quem teve vários filhos, num casamento harmonioso e de muito companheirismo. João Pedro, cabra de poucas letras, "malmente" sabia ler e escrever, era um camponês que trabalhava numa pedreira em um latifúndio. Muito religioso, temente a Deus, vivendo na pele as injustiças e atrocidades exercidas sobre os empregados pelos donos da terra, tornou-se líder numa associação de camponeses na luta por direitos sociais. Organizava seus companheiros para reivindicar melhores condições de vida. Em 1962 João Pedro foi violentamente assassinado com tiros num crime cujo mandante foi um latifundiário. Alguns meses depois, sua filha mais velha não suportando a dor cruel do luto, suicidou-se tomando arsênico.

Ainda antes do golpe de 64, a história da morte de João Pedro foi publicada nos jornais e pessoas se interessaram por documentar sua vida no filme "Cabra Marcado para Morrer", cuja rodagem foi iniciada. Elizabete, viúva de João Pedro, continuou na militância camponesa e chegou a ser filmada. Era uma mulher com a fisionomia tipicamente nordestina, com dentes faltando na boca e com um discurso ingênuo comovente, de quem, com poucos estudos, sabe lutar por seus direitos e não se deixa abater. Na falta de João Pedro, vivendo a dor da trágica perda de sua filha mais velha, criava seus muitos filhos com dificuldades enormes.

Com o golpe de 64 o assassino de João Pedro foi absolvido, a repressão apreendeu quase todo o material da filmagem dizendo ser subversivo, e Elizabete teve que ir para a clandestinidade, afastando-se dolorosamente por muitos anos de todos os seus filhos. Ficou refugiada com nome falso, tendo que viver a vida de uma outra pessoa, destituída do direito à sua identidade e à sua história.

Quando veio a abertura política muitos anos depois, visivelmente envelhecida pelo sofrimento que passou, Elizabete pode retornar às suas origens e o projeto do filme "Cabra Marcado para Morrer" foi retomado e levado adiante. Elizabete não conseguiu retomar contato com todos os seus filhos. Seus depoimentos no filme causam uma comoção profunda àqueles que assistem. Comoção profunda provavelmente somente àqueles que sabem na própria pele da dor de Elizabete, e que, independentemente das crises que nosso estado democrático atravesse, estão dispostos a lutar por anos de chumbo nunca mais.
                                                                                                   Marcia Gomes. 

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