quinta-feira, 17 de outubro de 2013

 "Blá, blá, blá domingueiro...." e....Texto extraído.

Texto de 20/10/2013
 
 
 
ATO  FALHO  (à Myriam Urpia, minha mãe)
             
                                              
Minha mãe, perco-a pela distância (mora em outro Estado), ganho-a pela maturidade. Quanto mais envelheço, mais gosto de minha mãe. Gratidão, perdão, ternura, compaixão. Uma saia tecida de palavras piegas que enxergo aos borrões.

Minha mãe cresceu uma vida controvertida. Primeiro morou num casarão enorme e elegante no bairro da Graça. Depois, enquanto seus pais estiveram separados, dividiu um único prato de caruru com seus seis irmãos. Coisas que aparentemente se repetem ao longo de diferentes gerações. Mas ganham seu tom de novidade mais ou menos trágica, porque muda a cultura, porque cada um é um.

Minha avó materna, na Rua dos Aflitos (ai, as palavras), dava aulas de datilografia para comprar o prato de caruru. Minha mãe, quando se separou de meu pai, vendia livros de literatura de porta em porta. Trabalho em casa, trabalho na rua e a mesma tenacidade dessas mulheres de diferentes épocas, com coragem de sair das relações se não são mais amadas.

Lembro que numa dessas histórias que já contei, falei que aos meus oito anos o mundo parecia ruir sobre nossas cabeças. E, minha mãe, que não era exagerada nem eloquente, pelo contrário, naquele tempo tímida, nos contava "causos" para nos entreter. Se não tinha o dom da palavra como meu pai, tinha a voz linda, musical. Não era só a voz. Era toda linda. Parecia aquelas estrelas de cinema da década de 50. Estrela de cinema triste e mal cuidada.

Seu nome, Myriam, é o da Virgem Maria em hebraico. Seu cheiro ainda é o mesmo, até hoje. Açucena, talvez. Mais pelo nome do que pelo cheiro. Eu não sei ao certo que cheiro açucena tem. Mas é um "açucenar" de maternidade.

Quando as lides domésticas davam trégua, minha mãe sentava no batente do fundo da nossa casa em Ibirataia e contava. Sem amargura, com bom humor ela nos disse que queria ser engenheira. E o que é pior: ficou sabendo que estava destinada a ser pianista. Onde já se viu, naquela época, uma mulher fazer engenharia?  As aulas de piano eram seu terror. Mesmo no tempo da Rua dos Aflitos, continuaram as aulas. Creio que era sua tia Noêmia, professora da Escola de Música quem patrocinava.

De modo que não tendo como escapar, minha mãe teve que dar um concerto. O grande problema eram os sapatos. Eram todos velhos, de segunda mão e um par de sapatos custa bem mais caro que um prato de caruru. Não havia dinheiro. Chegou o dia do concerto. Praticamente em cima da hora o dinheiro apareceu. Provavelmente dádiva de tia Noêmia.

Minha mãe foi mandada às pressas à sapataria e comprou o "par" de sapatos, sem que houvesse tempo de experimentar. Ao sentar-se ao piano, sentiu-se torta dentro deles. De repente deu-se conta que havia comprado dois pés esquerdos. Não sabia se olhava para o teclado ou para os pés. Não teve conserto mas houve concerto.

Minha mãe formou-se em música. Conheceu meu pai no Largo da Piedade, junto ao conservatório. Nada conservadora a minha mãe. Nunca a vi tocar piano. Vejo-a sim a fazer planilhas, orçamentos, cálculos complicados, inclusive os meus.
                                                                                                             Marcia Gomes

P.S. Texto extraído de CONVERSA  MARCIANA (2002). Coletânea de escritos para circulação entre amigos. 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário