quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro..." e...MARAvilha!

Texto de 17/08/2013


"...Porque és o Avesso do Avesso do Avesso do Avesso"
Foto de Joaquim Leal Gomes em São  Paulo
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


Maria, Mara, Maroca. Ela veio. Papel com endereço anotado por quem, não sei.   Papel com endereço na mão apertado entre dedos.  Papel na mão quase feito em pedaços. Assim ela chegou, sozinha. Como terá adivinhado o ônibus a tomar?Como terá se orientado no emaranhado de ruas? Maroca põe sua inteligência a serviço dos afetos. Um saber que não é livresco, um saber quase como de bichos a aninhar suas crias.
 
Eu, sua cria, a aguardei por mais de uma hora. Abro a porta com a alegria lacrimosa de quem sabe vai revisitar o passado. Muito por causa dela,um passado bom. Ela, miúda, mirrada, muito magra, com cheiro de perfume barato. Perfumada, vestido azul com ares de reservado para ocasiões especiais, brincos e correntes dourados, uma bolsinha de nada, provavelmente só com o transporte,nenhum fio de cabelo branco sequer. Arrumou-se esmeradamente para me visitar.
 
 
Porta aberta e a sua voz inconfundível. Voz, será, não envelhece? --Me atrasei, né, Màcia? Foi o ônibu.  Noto, como na primeira vez que a encontrei por acaso quando eu comprava a planta para o consultório, a necessidade de franzir o cenho, comprimir as pálpebras para melhor divisar minha silhueta. Dou o abraço agradecida a quem me guiou com o candeeiro até a luz elétrica chegar. Abraço para mitigar a saudade daqueles tempos negros como a cor de sua pele, em que descendo vielas, subindo vielas às escondidas no Bairro do Alto das Pombas, pudemos dar uma trégua lúdica à dor da trágica separação de meus pais.
 
Abraço minha história. Faço pazes. Logo Maria está sentada no sofá.  Sua risada, ainda que lhe faltem dentes, inconfundível. Risada, será, não envelhece? --Mácia, você ainda tem a mesma cara de quem gosta de chorar. Você se alembra daquele namorado seu que o pai morreu e você se acabou de chorar? Mácia, você já gostava de um hôme véio!Aquele seu namorado que o pai morreu não era perto da idade de seu pai?  Falta, né, Mácia, muita falta de seu pai. Mal contenho o choro com a sensibilidade de Maroca. Pra disfarçar, sorrio das suas incursões psicanalíticas. --Doutô Joaquinho, êta mulato bonito, quando fazia supermercado com Sandra, comprava carne sertão pra mim. Seu pai era hôme bom .E quem vai dizer isso a Dona Mira, né Mácia? Dá uma risada farta. ---Só se quiser a inimizade dela. Outra risada farta.
 
Assim eu e Maroca enveredamos por um labirinto de recordações muito vívidas, quase disputando de qual das duas a memória é mais irrepreensível. Ela me conta que  tem sete filhos, várias netas e netos e dois bisnetos. Baixa a vista e embarga a voz para dizer que ficou magra assim por ter perdido um neto que se envolveu com drogas . Faz questão de garantir que todos os seus filhos e filhas e demais netos são direitos, do bem. Ela mora com Sandra, sua filha mais velha, que não casou. ---É ela que me mante, Mácia. Mas não tenho queixa de meus filhos. Tudo são bom pra mim.
 
Conta que há muitos anos se separou de Nêgo e "com poucos tempo ele faleceu.". Coloco Maria para falar ao telefone com Sandra, minha irmã mais velha, sua comadre que mora em Aracaju. Uma longa conversa. Sandra se emociona muito.
 
E assim passamos umas três horas conversando, eu e Maria, como se não fosse possível que tantos anos tivéssemos passado sem nos ver. O que pode ser a passagem do tempo diante da densidade da experiência? Me sinto acalentada por aquela presença cálida. Quase sinto vontade de pedir a ela que não vá embora, jamais. Aquela pessoa na minha casa me conta que eu fui feliz, em meio à dor. Que talvez pra ser feliz, em meio à dor, é preciso uma operação de resgate de pequenas coisas do cotidiano, que parecendo supérfluas, quando se sai da penumbra com a chegada da luz elétrica, ficam irresgatáveis.
 
Aquela senhora, idosa, na minha casa, mais que a psicanálise, mais que o cinema,  a literatura, mais que meus pacientes, meus amigos, meus amores,me deu a verdadeira medida da importância que eu possuo como ser humano. Me contou que os anos que vivemos juntas foram especialíssimos para cada uma de nós. Que importa a passagem do tempo?  Daí, cada detalhe do labirinto de recordações ter significado ímpar, ser rememorado com uma generosidade quase desconcertante, porque a gente desmonta quando é muito grande a comoção.
 
Eu não soube entender como chegar à casa dela, não tem telefone.  Se foi, prometendo me ligar. Levou, consigo, o fio de Ariadne. Eu, presa no labirinto, até quando?  Um último abraço e fica em meu corpo o cheiro maternal de seu perfume barato. Até breve, Maroca! Deus lhe abençoe.
                                                                                                   
                                        Marcia Gomes.

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