quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro...."e.....Texto extraído. (DESPEDIDA)


Texto de 22/09/2013


Foto: Fonte Grande-Itapoan. Toalete no Camarim Antes de Entrar em Cena.
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)

DESPEDIDA

No dia em que você chegou eu estava muito, muito triste. Como teria sido se você chegasse todo alegre, serelepe? Mas não. A languidez dos seus cílios enormes mal escondia tristeza tal e qual a minha.
 
Você era uma figurinha de gente segurando, indefeso, a mão da mãe. Não atendeu ao meu convite pra subir. Pelo contrário, sentado na escada, empacou. Decidi respeitar seu movimento de recusa. Sentei-me a seu lado, na escada. E lhe disse compreender o quanto era difícil estar ali. Sua mãe nos olhava, possivelmente preocupada com o desfecho.Você, cabisbaixo, sentado, subiu rapidamente o primeiro degrau. A cada fala minha refletindo seu sentimento, você galgava mais um degrau, sentado. No topo da escada levantou-se, seguiu-me.
 
Estávamos dentro da sala. Você olhou silencioso para uma folha de papel sobre a mesa. Entreguei-a e, mais que depressa, providenciei hidrocor. Você, concentrado, silencioso, desenhava. Concluído o desenho, balbuciou em tom quase inaudível: "a chuva é colorida mas corre para o esgoto". Sim. A chuva é colorida mas corre para o esgoto. Posso intuir a dor contida na sua metáfora.....
 
Nos encontramos muitas e muitas vezes.Você, a princípio, silencioso, era inteligente o suficiente para propor e comandar a brincadeira.Só com gestos, dramatizando.Eu topei iniciar a relação submissa, servil. Imaginei que era aquele o modelo de relação que tinha para me oferecer.
 
Na brincadeira, você era o dono ou gerente de uma loja. E eu, um carregador de mercadorias pesadas. A cada vez você me ordenava carregar coisas mais pesadas. Você me punha à prova. Eu obedecia. Esse jogo repetiu-se várias vezes. De vez em quando você deixava o gerente e assumia o papel de caixa. Punha então, compenetrado, um lápis atrás da orelha. Eu mal continha o riso nessa hora. Sabia ser a brincadeira muito séria.
 
Um dia, inadvertidamente, você falou comigo. Bravo, me repreendeu severamente como o patrão ao empregado. Você falou comigo! Eu exultei de alegria, mas, consciente do meu papel, disfarcei. Mudamos de jogo, de papéis, várias vezes. Repetíamos cada um, até que pequenas mudanças se anunciavam e era dado o salto.
 
Nos demoramos mais na fase de assassinar o pai. Você compunha inumeráveis cenas de família, a sua história, que culminava com a morte do pai. A cada dia uma nova peça de brinquedo era trazida.Era a arma do assassinato. À essa altura já conversávamos animadamente. Demorou, mas um dia você disse meu nome, sentou no meu colo. E me pediu, bandeiroso: "não fala pra mamãe".
 
Chegou o fim do ano. Uma coisa triste:você foi reprovado na escola. Não foi possível alfabetizar-se. Ainda recusava contato fora do nosso pequeno espaço. "A nossa sala", como dizia você. Fomos crescendo de jogo em jogo.
 
No ano seguinte, comuniquei que eu sairia de férias. Você desmontou por um segundo, se refez e acrescentou:"vou fazer uma carta de amor pra você". A carta foi longa, demorada. Você se afastou de mim e cobria o seu trabalho com a mão para eu não ver. Eu esperava, ansiosa, imaginando estar você garatujando, fazendo rabiscos. A carta era uma lista de palavrões bem pesados, muito bem escritos. O primeiro impacto foi a mágoa. Então era aquilo a carta de amor? Você se adiantou, explicando: "estou muito bravo porque você vai viajar e logo hoje que eu vim pra lhe contar que já sei escrever".
 
Sim, era uma carta de amor, a mais linda que recebi. Você estava mais que alfabetizado e se aventurava a expressar diretamente a sua raiva em relação a nosso afastamento. Aquela carta cheia de xingamentos era a surpresa, a revelação do seu abrupto progresso na escola.
 
Finalmente chegou aquele dia, misto de alegria, tristeza, saudade, esperança. Tanta coisa! Você já não matava o pai nos nossos jogos de família. Ele era incluído na brincadeira. Quando incomodava, você expressava seu desconforto. Às vezes você o excluía por algum tempo, em seguida o trazia de volta. Fazia amigos na escola e participou de um acampamento afastado de casa por vários dias. Nós ríamos muito juntos, você me pregava peças. Era hora de despedir. Nós dois sabíamos e nos preparávamos. Mas naquele dia eu tinha a voz embargada.
 
Você, compenetrado como sempre, me disse outra vez: "vou lhe escrever uma carta de amor". Pegou hidrocor, cartolina, cola e lantejoulas. Começou a trabalhar velozmente. Desta vez, não se afastou de mim, nem cobria com a mão para que eu não visse. Compunha um céu cheio de luzes e brilhos.Terminado, pediu para pendurar na parede. E, embora soubesse, perguntou: "você mora aqui?" Respondi.Retrucou: "então venha aqui um dia de noite e apague a luz. Você vai olhar pra isso daí brilhando e não vai ter medo de escuro nem nada."
 
P.S. Texto extraído do manuscrito " RECORTES "(1991), crônicas digitadas por Ana Cecília Bastos para me dar de presente de aniversário e fazer circular entre amigos. O texto "DESPEDIDA" é um relato literário de um atendimento clínico a uma criança em 1988, em São Paulo. Naquela época, eu, psicoterapeuta, muito longe estava de ocupar o lugar de psicanalista. Não fazia a menor ideia do que era isso.
                                                                                         
        Marcia Gomes.

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