quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro...."e....Textos extraídos. ("DECLARAÇÃO  DE  AMOR  I" e "PARANÓIA")


Texto de 29/09/2013



Foto: A Letargia. Sabotagem à Mais-Valia?
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


DECLARAÇÃO  DE  AMOR  I

Foi há muitos anos.1985.Eu tinha a pele acobreada dos raios de sol generosos de quem volta de férias da Bahia. O coração em alvoroço. Você era um amigo à moda de amante século XIX. E eu nem saberia suspeitar onde termina o amigo, onde começa o amante. Você, tampouco. Talvez menos ainda. Será que tínhamos como álibi dizer que o amor inocenta? Eu, embora infeliz, era compromissada numa relação de casamento que ia chegando ao fim.
 
Você, de São Paulo, me enviou, para inaugurar o Ano Novo, uma foto sua junto com rosas vermelhas.Rosas vermelhas de surpresa foram suficientes para pôr meu coração em alvoroço.
 
Eu, alvoroçada mas tímida, cheguei de surpresa. Se avisasse a data, mal conteria o sobressalto da expectativa.Creio que foi desta vez. Tenho dúvidas. Estava dura de grana.Muito dura. Havia pedido demissão do emprego que me mantinha, a contragosto, de pés amarrados ao passado na Bahia.Foi com dor, mas cortei os laços. Naquele tempo começar de novo não me atemorizava.
 
Desempregada, dura, voltei de ônibus.Havia uma geladeira no ônibus. E na geladeira do ônibus havia sorvete pra você. Que loucura! Trinta e seis horas de calor inclemente e lá estavam: mangaba, cajá, umbu. Sapoti? Sapoti não tenho certeza. Talvez não fosse época. Mas é impossível falar em você sem lembrar sapoti.
 
O coração em alvoroço não se impediu entristecer ante a vida miserável do interior da minha terra. O ônibus, cruel, parecia persegui-la. Era quase proibido sentir-me apaixonada em meio àquela paisagem.
 
Cheguei a São Paulo às cinco horas da manhã. Em São Paulo, às cinco horas da manhã é noite ainda. E pensar na preguiçosa, lenta e sorrateira aurora em São Paulo me lembrou "A Morte do Leiteiro" que você, segundo me contou, recitava na sua adolescência. Leite e sangue se misturam compondo os tons da aurora....mataram o leiteiro. O motorista de táxi me roubou e ficou impune...
 
Assaltada, mas feliz, fui ter com você à tarde.Você me abraçou por trás e o meu corpo pareceu dissolver-se no tamanho do seu abraço. Desfeito o abraço, intimou-me docemente: "Vamos tomar um café?" Fomos sempre cúmplices em café de máquina que só agora chega na Bahia. Contanto que não passasse das 5 da tarde. Senão você perdia o sono. Deus me livre fazer você perder o sono. Aliás, bem que gostaria.
 
Fomos tomar o café. Subimos no ônibus. Descemos do ônibus e toca a caminhar. Era fim de semana e eu usufruía, saudosa, o tom bucólico das ruas do centro de São Paulo. O que me prometia um café tomado assim tão longe?
 
Você me guiava no emaranhado de ruas.Estava perdida. Pra que me achar? Você conhece São Paulo como a palma da sua mão. Linda mão, diga-se de passagem. Caminhando, olhávamos os tipos humanos. Como o café, também é hábito comum. Como nos divertíamos ante o inesperado das cenas dessa gente multifacetada de São Paulo! Os nordestinos, especialmente, que percorrem as vitrines com o olhar comprido.
 
De repente, chegamos. Você tinha um ar maroto. Tímido. E a doçura do olhar. Não tenho esperança de encontrá-la em ninguém mais. E, o que é pior, nem em você agora...Tomamos o café. "Gostoso", "tá forte", "tá quente", "tá fraco".Tá tudo o que pode ser um café.
 
Acabado o café, você toma minha mão, a põe no seu peito, e diz: "Alguma coisa acontece no meu coração".Estávamos na esquina da Ipiranga com a São João.
 

                                                       
PARANÓIA

Hoje estou feliz. Escrevi uma carta entrecortada. Esse motivo de felicidade não vem ao caso. A não ser para dizer que já não sei mais como se escreve um texto feliz, ainda mais com esse nome tão pesado.Como, de volta à Bahia saber escrever um texto feliz? Como, escrever um texto feliz, exilada?
 
Pois eu também estava feliz naquela ocasião. Passamos um ano longe, eu e você. Nunca um longe foi tão saboroso! Eu usufruía gota a gota cada momento da sua estada fora. Era minha a sua alegria. Cada cidade visitada, cada descoberta, cada novo encontro pessoal, cada tudo.....a gente compartilhava.
 
Seu quarto ocupava o primeiro andar da casa. Lá, da sua escrivaninha, na sua máquina de escrever, eu lhe fazia mil cartas. Às vezes a revoada de pássaros no céu, às vezes o pôr do sol, uma música, qualquer coisa do cotidiano era notícia que eu lhe mandava.
 
Você deixara as suas coisas comigo, plantas, pessoas, papéis, inclusive a casa. E eu cuidava. O desvelo se renovava diariamente, como se fosse você chegar amanhã. Um ano era pouco para preparar a sua chegada. Os envelopes de suas cartas eram azuis. Dentro, a poesia revelada. Somadas, dariam um livro, se você quisesse. Se não o mais bonito, o mais fiel  ao seu ofício de com o deslizar da pena deixar pegadas nos caminhos que o coração percorre.
 
O nosso amor, imenso, a nenhuma categoria se aplicava. Era estranho, transgressor, desafiava. O carteiro do Sumaré, todo dia, parecia lambuzado de alegria; o carinho, no envelope, mal cabia. Transbordava. Não era só o carteiro. Uma vez, um eminente portador internacional me entregou delicados doces de marzipã, dietéticos. Você se dava ao trabalho de visitar lojas especializadas.
 
Outra vez, lhe mandei uma colcha de retalhos feita por mim. Causou estranheza. Aqueles diversos pedaços de panos ajuntados, pareceram aos europeus testemunhas da nossa pobreza, brasileira. Estavam redondamente enganados. Testemunhavam, isso sim, a riqueza da nossa relação pacientemente costurada.
 
Nesta história, tão bonita, pra que aparecer percalços? Apareceram. Quem já viu amor sem percalços? De repente, talvez por força do medo de toda aquela intensidade, medo do meu próprio desejo, deixei a sua, voltei pra minha antiga casa. Em razão disso, as suas coisas, embora cuidadas, não o eram mais diariamente. Outra vez, lá estavam os nós. Difícil desatá-los, ainda mais por carta.
 
Num dia cheio de acidentes e obstáculos, você chegou. Dezesseis de abril, não esqueço. Por razões de acidentes e obstáculos, a gente dificilmente se encontrava. Finalmente aconteceu. Nos encontramos numa tarde outonal no Largo do Arouche, para conversarmos. Passeamos, tocados pelo tom bucólico da praça. Sentamos em algum lugar, se não me engano, com cadeiras na calçada. Você me presenteou com um maço de violetas.
 
Culpada, constrangida, pedi-lhe desculpas por, de certo modo, ter abandonado suas coisas, sua casa. Então você disse que me desculpava e que independentemente do modo como cuidei das suas coisas, tinha a fantasia de me levar a um juiz de paz. Não tenho registro da emoção. Deve ter sido pânico. Apavorada, me deu um branco, não entendia o que você falava.Eu não suportava. Então fui agressiva com você.
 
Você explodiu em fúria. Saiu, abandonou-me sozinha na praça. Antes porém, sugeriu que eu fosse consultar o dicionário.Não resolveria. Era no coração que o significado não cabia.
 



P.S.1. Digitando em setembro de 2013, este texto que quando escrevi intitulei "Paranóia", vejo hoje que caberia chamá-lo  "masturbação de uma histérica de compêndio psicanalítico". 
 
P.S.2. Textos extraídos do manuscrito RECORTES (1991). Digitados por Ana Cecília e Virgílio para me presentear no meu aniversário e fazer circular entre amigos.
                                                                        
         Marcia Gomes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário