quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro......."e.....Texto extraído. ( CHAKIB,  ESFIHA,  COALHADA.)


Texto de 06/10/2013



Foto: Boipeba. Florescer..
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)



 CHAKIB,  ESFIHA,  COALHADA.
 
Um dia, indo à feira, apaixonei-me por uma casinha na Vila Madalena. Tinha, na frente, uma área luminosa, a céu aberto. Havia muros brancos onde poderia se esgueirar uma unha-de-gato. Não titubeei. Mudei-me. Com o coração ainda um pouco doído. Doendo uma separação conjugal que ao mesmo tempo me aliviava. A vila, com seus enternecedores paradoxos, prometia, se não dissipar a dor, pelo menos acalentá-la. Mal sabia eu que seria depois de separada, que viria a viver a dor de amor indissipável, inacalentável, "razão" da minha vinda de volta para Salvador. Quando a gente se repete, embora mudem as pessoas, persiste, denunciadora, a viciada escolha de objeto.
 
Pois é. Mudei-me para a Vila Madalena. Afinal, não é em qualquer bairro que um girassol enorme brota, teimoso, em plena calçada ! E lá brotava. Em meio à sacralidade da santa e o desvario da puta, Madalena. Em meio à graça dos nomes de rua :Purpurina, Harmonia, Fidalga. Em meio às rotinas nostálgicas dos velhinhos e à  irreverência transgressora dos artistas.
 
Na minha rua predominavam os velhinhos. Casinhas simples, mantidas a singelos cuidados de aposentados. Nas manhãs de sol, todos eles acorriam aos portões e lá ficavam, contemplando, na sua placidez, a rua, como se fosse a antevisão da eternidade.
 
Mudei-me. Tudo no bairro o fazia parecer imune à maldade. E eu, dormia a sono solto, quando o ladrão levou consigo o banco dianteiro do meu carro. Velho, talvez para fazer face à morte, tem sono leve. Acordaram a tempo de ver o ladrão levando o banco, na sua barulhenta impunidade. Solidários, confabulavam. Logo eram duas facções : os pró e os contra acordar a dona do carro. Liderando os contra, estava o guardião maior do sono da donzela. Segundo ele, uma moça tem direito ao sono, irrevogável, pelo menos até que se anunciem as primeiras cores da aurora. Isso, a despeito do que quer que tenha sido roubado. "Inda mais essa moça que trabalha tanto e se recolhe tarde". Era verdade. Sempre precisei trabalhar à noite, no consultório.
 
E assim foi feito. Sua opinião prevaleceu. A moça, quando acordou, já ia alto o sol da manhã. Era sábado. Saía, desavisada, em direção à feira, motivo de alegria por si só. A feira, na Vila Madalena, é um acontecimento estético-social. Formas, cheiros, cores, sons e tipos humanos invadindo as ruas. Pois então ia a moça à feira, quando vários vizinhos se aproximaram notificando o fato.
 
Mais comovida com o gesto do que assustada com o roubo, procurou saber de quem partiu sensível adivinhação das idiossincrasias de seus hábitos. Detesta ser acordada, seja qual for o motivo. E agradecia.
 
Finalmente foram apresentados. Com a sobriedade que convém aos quase oitenta anos, ele disse : "Eu sou Chakib, às suas ordens". A moça, adivinhando ser a solenidade mera fachada, brincou : "Também esfiha e coalhada?" Ele era de origem árabe, via-se pelo nome. Sorriu e prometeu apresentá-la a seus dotes de cozinheiro.
 
Iniciou-se então aquela bonita amizade. Sr. Chá - assim ele gosta de ser chamado- , no seu ócio de aposentado, estava sempre à porta, intrometido, acompanhando vigilante os destinos dos moradores da rua. Que não me leiam as feministas, considerava-se o guardião da suposta desproteção das mulheres que vivem sozinhas.
 
Tão logo entrava um homem na minha casa, tocava o telefone. Era Sr. Chá colocando-se disponível para me proteger, caso alguém me importunasse. Sinto tê-lo frustrado, sempre. Nunca foi chamado. Não pra isso, é claro. Também, se o chamasse por outro motivo, jamais viria. Não ficava bem. Ele, um homem sozinho, entrar na casa de uma moça também sozinha, explicou-me. De modo que o nosso caso amoroso acontecia da porta pra rua. Exceto quando havia alguma amiga na minha casa. Aí ele vinha e contava "causos" e "causos" dos seus tempos de mascate.
 
Adorava ópera. Chorou emocionado quando lhe dei de presente um toca-discos para escutar Pavarotti. Tanto quanto a ópera, a horta, o jardim, o pomar. As maiores jabuticabas já vistas nesse mundo; couves, cheiro verde, alface, almeirão; rosas, cravos, rendas portuguesas; tudo era generosamente distribuído com a vizinhança. A mim, Deus sabe porque, cabia o melhor quinhão. Através de quibes e acarajés derrubamos fronteiras geográficas, cronológicas, raciais.E era entre nós uma ternura sem conta.
 
Acima e além de tudo, exercia a função poética de guardador de minha luz. Tão logo anoitecia, se punha a postos. Era um holofote que ficava do lado de fora iluminando meu caminho de entrada. Às vezes, algum passante se atrevia a apagá-lo. Ele intervinha, severo. E lá permanecia de plantão até que eu chegasse do trabalho.
 
Quando tudo foi desfeito, aquela lâmpada foi, felizmente, presenteada a ele. Nada mais justo, nada mais certo. Às vezes, eu penso, toda minha luz ficou lá, para sempre. Não faz mal, tá bem guardada. Saudades, Sr. Chá !!!
 
P.S. Texto extraído de  RECORTES (1991). Coletânea de escritos para circulação entre os amigos.

                                                                                Marcia Gomes.  


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