quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Blá, blá, blá domingueiro....."e.....Textos extraídos. ("MARIA  JOSÉ" e "CHICO,  O  IMPREVISÍVEL")

Texto de 08/09/2013



Foto: "Dom Quixote de La Playa"
Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam)


 MARIA  JOSÉ

O mistério de Maria José era insondável. Para mim que convivi com ela até meus quatro anos, era uma espécie de noite sombria e enluarada que se alternava sem quê nem pra quê. Era muito bonita. Morena, cabelos lisos sempre curtos e um corpo bem feito. Não sei até quando pôde ter estudos. Lembro que tinha uma letra linda pousada em uma fotografia sua dedicada a meu pai.
 
Nos tempos de sombra andava o tempo todo pela casa olhando para o chão e enrolando um dedo no outro. Às vezes sentava enrolando um dedo no outro. Se a gente olhava para ela, esticava os lábios e mostrava os lindos dentes. Mas não era um sorriso. Era um esgarçamento de dor.
 
Na casa, que eu me lembre, ninguém falava do mistério de Maria José. Pelo menos a mim ninguém explicou. Era quase como um objeto animado enrolando um dedo no outro, comendo, bebendo, evacuando e olhando para o chão.
 
Quando a lua ia chegando eu logo sabia. Maria José ficava faladeira e dava muita gargalhada. Me punha no colo e contava repetidas vezes a história de Magda. Uma menina que roubava as maquiagens e as roupas da mãe e se enfeitava toda para sair. Era ela. Era a lua chegando. Meus pais não gostavam que ela me contasse aquela história e, com jeito, me tiravam do seu colo.
 
Quando a lua se tornava maior e luminosa, Maria José começava a costurar. Era incansável. A gente ouvia o barulho da máquina de costura de madrugada. A saia era de cetim azul cheia de luas em lantejoulas e, a blusa, de lamê prateado. Quando a lua atingia seu pico mais alto, Maria José vestia sua fantasia e ganhava o mundo. Ninguém via a hora da transmutação.
 
Passavam-se dias sem o menor sinal da enluarada. Mas voltava. Toda esfarrapada e suja qual uma colombina desfeita em quarta-feira de cinzas. Aí, chegavam uns homens vestidos de branco. Davam-lhe uma injeção e a levavam na ambulância. Eu tinha pavor daquela cena.Pra onde levavam Maria José? Por que não a deixavam sossegada em casa, olhando para o chão e enrolando os dedos? Quem sabe? Ninguém.
 
Passaram-se os anos de noite sombria. Nem a Psicologia me deu resposta para o mistério de Maria José. E a Psicologia tem lá resposta pra nada? Morreu no Juliano. Nunca a visitei. Perdão, minha tia, não costumo ser, mas fui covarde. Vergonhosamente. E covardia, Deus castiga.
 

       CHICO,  O  IMPREVISÍVEL

Essa, se não me engano, foi contada em Ibirataia.Cidade feia onde à noite havia tiroteio dos "playboys" filhos dos fazendeiros de cacau.Fomos pra lá quando eu contava 7 anos. Antes, dos 4 aos 7, vivíamos em Taperoá, cidade linda.Lá tinha zameapunga (festa folclórica), tinha a festa de São Brás, o padroeiro de um povo cordato que vivia predominantemente de pesca e de catar cravo da Índia. Botavam os cravos a secar em esteiras nas portas das casas.Cidade perfumada. À exceção dos sábados. Sábado era cheiro de estrume dos cavalos, por causa da feira.
 
Por que então, mudamos pra Ibirataia? Porque um homem feio, carrancudo chamado Lourival Dias Lima (que nome...) foi convidar meu pai. Vocês acreditam que esse homem nunca havia visto um aeromodelo? Meu pai fazia aeromodelismo e pendurava os aviões na parede da sala. Enquanto o homem de nome esquisito esperava meu pai para negociar a mudança, pegou um avião e nos perguntou:"o que é isso, pra que serve?" Sutil como um elefante, enfiou o dedo na asa e danificou o avião. Eu, devo ter pensado com meus botões: "essa mudança não vai dar certo"......
 
Por que não adverti o meu pai? Ele era ateu, comunista e não acreditava em premonição. Ainda mais de criança....Mudamos. Aquele cheiro de cacau (dinheiro?) me enjoava. O mesmo da cidade baixa aqui em Salvador nos anos passados. Pra compensar o cheiro de cacau, tinha os "causos" de meu pai. Ele era um contador de "causos". Como eu. Só que eu conto pro caderno. Sim, é um caderno. Herdei a aversão à tecnologia e até hoje não tenho um computador.
 
Ele, não.Contava aos amigos, nas rodas sociais.E era exagerado.Dizem que é mania de pescador.E ele o era, diletante, na casa de Itapoã.Muito pobre, mas tinha uma casa de veraneio, presente de um padrinho rico.Nesta casa trabalhava Chico.Não pode fugir ao relato a informação de que Chico já era um senhor, lá pelos 50 anos talvez.Cuidava da casa em Itapoã e estava muito acostumado a subir nas árvores para pegar frutas.Subia com muita destreza no pé de jaca.
 
Um dia, Chico comunicou, solene:"vou viajar". E o seu interlocutor (devia ser meu avô paterno), obviamente, lhe perguntou:"pra onde Chico, pra onde você vai, e a casa, quem vai cuidar?" e Chico retrucou ainda mais solene: "vou pro Rio de Janeiro. A casa, o senhor dá um jeito por enquanto porque depois eu vou voltar". "Seu" Zacarias (era esse o nome do meu avô) ficou perplexo e mais uma vez perguntou: "mas como, Chico, você vai pro Rio de Janeiro, com que dinheiro?"
 
Chico perdeu um pouco da solenidade, deu um risinho de canto de boca e disse com a maior facilidade: "ô xente, Seu Zacarias, quem disse que eu preciso de dinheiro, eu vou a pé".O meu avô esbugalhou os olhos, perdeu a paciência e disse indignado: "você pensa que o Rio de Janeiro é ali? Ninguém vai ao Rio de Janeiro a pé. Onde já se viu? Você vai morrer de fome ou do coração.Você é maluco?" Então Chico ganhou um certo ar de ironia:"dinheiro pra comida eu tenho. E vocês me bota pra subir nesses pé de árvore tudo e eu nunca morri".
 
Toda a família se envolveu no assunto. Ninguém conseguia demovê-lo. Alguém, numa vã tentativa, ainda arriscou uma última pergunta:"me diga uma coisa, Chico, você vai mesmo pro Rio de Janeiro fazer o quê?" Chico abriu um sorriso largo de quem sabe das coisas:"vou ver o mar".--"Vai ver o mar? você mora defronte do mar, tá no mar toda hora...." --"mas é que o mar de cada lugar é diferente. Quando eu voltar vou contar pra vocês como é diferente". Ninguém mais pôde contestar Chico. A família jamais estivera no Rio de Janeiro. Lá se foi Chico.
 
Passaram-se meses e todos iam ficando tristes. O davam como morto. Um belo dia chega Chico casa adentro. Estava abatido, com as pernas e pés acabados. Tão inchados que até parecia elefantíase. Não se queixou, foi lacônico, disse apenas uma frase:"não disse que é diferente?"
 
Chico demorou a se curar.Foram muitas as infusões de Dona Petronilha, para os íntimos, Santinha. Era minha avó. Quando estava bonzinho da Silva, retomou as lidas da casa e obviamente subiu no pé de jaca. Distraído (quem sabe pensava no Rio de Janeiro?), desequilibrou-se e, catapumba! Lá estava Chico estirado no chão. Teve um enterro solene de homem realizado. "Mais vale um sonho, do que prever o dia de amanhã". Disse meu pai encerrando a narrativa.
 

P.S. Textos extraídos da coletânea de escritos intitulada "CONVERSA  MARCIANA" (2002), de circulação entre amigos.
 

Marcia Gomes.

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