sábado, 7 de fevereiro de 2015

08/02/2015                              AURORA

Cinco horas da manhã de uma quinta-feira. Espio a Sabino Silva da minha varanda. A rua está quase por inteiro entregue aos sinais do amanhecer, ainda abandonada pelo ruído dos carros que se ausentam. Os toldos armados para o carnaval, ainda destituídos da sua função, parecem construções fantasmagóricas (fantasmáticas?) que querem somente enfeiar a paisagem. O céu é de um negror se abrindo aos poucos para nesgas de cinza, que, com mais velocidade, ganham tons róseos, enquanto o negro vai também com velocidade se azulando.

 Há nos prédios um silêncio sepulcral enquanto que o fundo azul-rosa do céu parece ser anunciado pelo canto de um galo solitário. Os passarinhos logo passam a acompanhá-lo numa orquestra discreta de gorjeios, que começa com um acorde aqui, outro ali, para logo em seguida, num crescendo, se fazer numa sinfonia célere, enquanto que ao fundo, o canto do galo vai esmaecendo. Então o céu já se transformou num clarão de amarelo de fundo azul, enquanto a orquestra perde um pouco em harmonia com o ruído eventual de carros passando.

 A passagem da noite para o dia é uma mudança gradual (fading in e fading out ) em que rápido se intercala o que é figura, e o que é fundo. Às vezes o ruído de um carro passando, dá a ilusão de uma onda do mar que furiosa se arrebenta para em seguida silenciar, se dissolvendo na areia da praia. Pura ilusão. Daqui do meu prédio não vejo o mar. De repente, o silêncio se faz e o galo se pronuncia de novo, em seguidos cacarejos. Entretanto seu canto é logo de novo sufocado pelo ruído dos carros que vai se fazendo mais frequente.

 O sol, indeciso ainda quanto a com que pujança quer se manifestar, se faz presente como um clarão impressionístico de contornos disformes por trás de um prédio, e sua força já diz sem titubeios que a transição já se fez. Então posso apagar a lâmpada. Definitivamente já é dia. Já é possível ver enfileirados um carro atrás do outro na rua. Quando de vez em quando o ruído de carros se faz fundo, os passarinhos comparecem não sei se com gorjeios, não sei se com gemidos, em protesto contra a invasão sonora da vida urbana que vai se impondo. O sol, agora um tanto mais decidido, brilha intenso e já me ofusca a visão, embora haja no céu um fundo nublado de tom plúmbeo, deixando pairar em mim a dúvida quanto ao que vai prevalecer. É luz? É sombra?

Rapidamente o clarão impressionístico ganha contornos cada vez mais ofuscantes de raios. O sol se decidiu. E a luz prevalece sobre a sombra. Agora que está decidido que teremos um dia de sol, vejo pessoas com a aparência de serem de baixo poder aquisitivo caminhando na rua. Provavelmente são trabalhadores dirigindo-se aos locais onde prestam serviço. Penso nestas pessoas que daqui do meu prédio não dá para ver se são jovens ou idosas. Me pergunto, para aquelas que podem ser idosas beirando a aposentadoria, como serão as vicissitudes do amor e da sexualidade. Agora que indiscutivelmente me chegam os claros sinais do envelhecimento, me vejo tomada por esse tema. Como é exercer o amor e a sexualidade num tempo de madurez. Que peculiaridade pode ter isto em pessoas desprivilegiadas sob o aspecto sócio-econômico?

 Escutei esta semana de uma manicure sexagenária de classe média baixa que tem um parceiro dez anos mais velho, que numa mudança gradual e natural como da noite para o dia, sua relação com o marido foi se tornando cada vez mais terna, cada vez menos sexual. Avalia que se amam mais, se acariciam mais, se beijam mais e sobretudo se aceitam mais, agora que está decidido pelas contingências, que não terão mais sexo no sentido estrito. Segundo ela diz, não planejaram isso, não discutiram a relação num papo complicado avaliando o que fazer com isso. Simplesmente aconteceu. Foi acontecendo talvez como um intercalar de figura e fundo, de fading in e fading out, como a substituição da orquestra de passarinhos pelo barulho urbano dos carros, como a substituição do clarão vacilante pelos raios brilhantes e decididos do sol.

Talvez pela primeira vez, escutei aquela mulher sem ideias preconcebidas. Estávamos num salão de beleza onde eu fui dar um trato nas unhas. Escutei genuinamente querendo aprender com ela. Escutei sem me perguntar por que o seu parceiro não lança mão de medicação para impotência. Vai ver tem risco de problema cardíaco. Escutei sem me perguntar por que ela não muda de parceiro para obter também uma satisfação sexual. Escutei admirando a sua coragem de se expor e a sua generosidade em partilhar comigo, também sexagenária, a sua experiência como sendo um modo de estar no mundo, entre outros, nem melhores, nem piores.

 Escutei acolhendo que para ela a escolha que fez é para sua subjetividade a melhor saída, não importa o que sobre isso esteja dito nos compêndios. Quando a gente alcança a madurez, muitas vezes, escutar ao vivo a experiência vale muito mais do que o que está escrito nos compêndios. Escutei, sobretudo, compreendendo e respeitando que a sexualidade vivida assim, pode ser uma alternativa de preservação de uma relação de amor. Escutei, sobretudo, não querendo atribuir a situação em que vivem, a uma inabilidade do parceiro. Vi que é uma situação dos dois, que não pesa mais sobre um do que sobre o outro.

Escutei suportando a "ferida narcísica" de começar a me dar conta de que também para nós mulheres, às vezes até primeiro do que para nossos parceiros, pode haver, sim, com o início do envelhecimento, um arrefecimento da libido. Escutei refletindo sobre mim mesma e consegui admitir que hoje em dia, mesmo quando estou na companhia de um homem muito interessante, já não recorro aos expedientes de sedução que usava no passado, às vezes quase numa atuação histérica. E não recorro, porque de certa forma prevalece um certo pudor aliado à maior vontade da troca, da partilha, do companheirismo, ainda que o desejo sexual continue ativo.

 Demorei para chegar a essa constatação. Dizem os ginecologistas que as cheiinhas de corpo como eu têm a vantagem de só muito tardiamente precisarem de reposição hormonal. Eu nunca fiz a tal reposição, nem vou fazer. Penso que ter sintomas de menopausa ou não ter, passa muito pelo lugar como mulher que se ocupa na cultura, independente de se ser cheiinha ou não. Sabemos que a reposição hormonal aumenta o risco do câncer de mama, tanto quanto o uso da "azulzinha" nos homens aumenta o risco de problemas cardio-vasculares. Sabemos também em contrapartida que o amor, a ternura, o afeto e o cuidado fazem muito bem ao coração.

 Penso agora que a sexualidade no idoso precisa ser vivida com as saídas singulares de acordo com a subjetividade de cada um, sem receitas prontas. Ainda outro dia, eu e um amigo, comentávamos com uma certa ironia sobre um conhecido comum muito sedutor no mau sentido, que está muito para além dos 60, e que se veste como um "garotão". Talvez esse arremedo de Don Juan se beneficiasse de uma conversa com a mulher que eu encontrei no salão de beleza. A conversa me fez tão bem e não é à toa que comecei esse texto tentando descrever a transição da noite para o dia e tentando fazer uma analogia com as mudanças graduais que acontecem na sexualidade dos que começam a envelhecer. Só me dei conta quando comecei a escrever, mas à saída do salão perguntei o nome da minha companheira de conversa. Ela me disse que se chama Aurora.
                                                    Marcia Gomes.

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