sábado, 29 de novembro de 2014

30/11/14  Cara leitora, caro leitor,

De volta a Salvador, vou dando prosseguimento à série de crônicas domingueiras intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Como vocês todos sabem, Dona Myriam Urpia a mulher guerreira cuja interessante personalidade vocês vêm conhecendo através do "Blá, blá, blá...", conseguiu sair vitoriosa da cirurgia. Atravessa um pós-operatório nem sempre fácil, por ter sido sempre muito independente, dona de seu nariz, enfrentando com garra as adversidades da vida. Então para ela é um pouco sofrido precisar ser cuidada e não ser dona de suas decisões.

A pedido dela, falei ontem ao telefone com seu amigo Doutor Justino que manda dizer que continua rezando por ela e que nas horas de maior aflição ela lembre das palavras de Santa Teresa D'ávila que diz que é preciso paciência e que tudo passa.Com o apoio que vem recebendo das cuidadoras e dos familiares Dona Myriam há de vencer esta batalha. 

Quando eu estava em Aracaju com ela, mais de uma vez  me pediu que não deixasse de escrever o "Blá,blá,blá domingueiro..." que  faz questão de ler. Então peço a Sandra (minha irmã), Alfredo (meu cunhado) ou Daniela (minha sobrinha filha de Sandra) que façam a gentileza de imprimir o escrito para minha mãe ler.

No dia 26 de novembro, quarta-feira passada, depois de ter em prol do bem estar dela, tomado a muito difícil decisão de retornar a Salvador, na nossa despedida minha mãe e eu passamos a manhã toda juntas de mãos dadas e conversando sobre as suas bonitas recordações de Taperoá, cidadezinha onde vivemos e fomos felizes. Então reavivo na memória de minha querida mãezinha a conversa que tivemos, esperando com isso dar a ela um alento para esse momento nem sempre fácil que está vivendo. Tomara que ela se entretenha e se divirta.

                                                     SAUDADES  DE  TAPEROÁ
Taperoá é uma cidade vizinha a Valença e próxima do Morro de São Paulo. Quando mudamos de Salvador para lá, Dona Myriam tinha apenas 24 anos. Era uma moça quase menina, linda. Magrinha e delgada, corpo bem feito, olhos azuis e cabelos cacheados em tom castanho, se não me engano. Já era mãe de três filhos: Sandra, a mais velha com 5 anos, muito faladeira e extrovertida, Marcia, que sou eu, com 4 anos, mais para tímida e reflexiva e Lula, nosso irmão que contava 2 anos e era um menininho rechonchudo muito bonito e engraçado. Dona Myriam ficaria grávida de Lilyana, a caçula, já vivendo em Taperoá. Eu já contei a vocês a viagem que fizemos às pressas de barco para Salvador para minha mãe parir Lily.

Mudamos para Taperoá para meu pai lá se aventurar na carreira de médico. A cidade era muito modesta, de arquitetura predominantemente colonial muito humilde e vivia-se da pesca, da fabricação de azeite de dendê e exploração de cravo da Índia. Nós fomos felizes naquela cidade. O capitalismo ainda não cravara suas garras cruéis naquele lugarejo onde muito da atividade era artesanal e muitas vezes meu pai era remunerado pelo seu trabalho de médico com peixes, frutas e verduras. Parece que todos nós concordamos que o que fazia de Taperoá um lugar especial eram seus tipos humanos.

A classe dominante era representada por alguns fazendeiros entre os quais estava Vítor Meireles, o prefeito, de quem meu pai era inimigo político. A divisão de classes sociais não era rígida, de modo que podíamos transitar com familiaridade entre as camadas populares.

 Nos mangues havia muitos caranguejos que na época de andada entravam sem nenhuma cerimônia nas nossas casas. Meu pai com seus rompantes sanitaristas, não nos permitia comer o inofensivo animal. Mas quando ele viajava Dona Myriam nos matava a vontade preparando uma deliciosa caranguejada com pirão de dendê. Era uma farra!! Nossa mãe sempre foi excelente cozinheira, mesmo sem a ajuda dos eletrodomésticos que já estavam na moda. É que meu pai era comunista e não se permitia consumir as invenções do capitalismo. E o trabalho sobrava para Dona Myriam que cozinhava em fogão à lenha e não podia ter liquidificador.

O padroeiro de Taperoá era São Brás, cuja igreja ficava na praça no alto de uma escadaria. Eu sempre fui uma criança tímida e assustadiça. Numa das festas de São Brás eu estava com minha mãe nas escadarias da igreja quando soltaram um foguete. Eu fiquei tão assustada com o barulho, que rolei escada abaixo e quebrei o nariz. Ainda hoje temos conosco fotografia daquela menina franzina com o nariz todo enfaixado.

Outra festa significativa em Taperoá era a Zameapunga. Ritual folclórico onde o povo mascarado e fazendo muito batuque dançava desfilando nas ruas até a praça onde depositava uma espécie de escultura enorme de caranguejo. Era uma festa popular muito interessante e original. Uma espécie de rito pagão de homenagem ao caranguejo que certamente servia de alimento básico às parcelas menos favorecidas da população da cidade.

O decano dos pescadores, "Seu" Luís de Abrão, usava um enorme chapéu de palha de abas imensas e à noite se reunia com seus colegas para contar "causos". "Causos" de pescador vocês sabem como é. Vence aquele que contar a mentira vantajosa maior. "Seu" Luís de Abrão, pai de Gil, era sogro de Conceição. Concé era uma moça bonita que trabalhava em nossa casa e tatuava na coxa com castanha de caju em brasa o nome do seu amado. Trabalhando lá em casa tinha também Cassiano. Um negro alto, corpulento de músculos rijos que tinha força suficiente para nos colocar de pé na sua palma da mão.

O dia de sábado era o dia da feira. Muita movimentação de cavalos na cidade. E por falar em cavalo, jamais eu e minha mãe na nossa conversa de despedida poderíamos esquecer "Seu" Juca. Um senhor obeso que desfilava pela cidade sempre a cavalo a caminho da casa de sua amante. É o que todos comentavam. Comentavam também que "Seu" Juca comia uma dúzia de ovos com uma dúzia de bananas de uma só vez. 

Na nossa conversa Dona Myriam e eu rimos juntas ao recordarmos de Chico Lecó. Chico Lecó era tido como doido porque passeava pela cidade com flores enfiadas nas narinas. Minha mãe se emocionou ao falar de Anísia e Ivone, de apelido Von. Anísia era a secretária do consultório de meu pai e morava conosco. Também Von morou conosco. Era uma amiga dentista que foi  trabalhar em Taperoá. Pessoa adorável, era muito apegada a meu irmão Lula.

 Na sua trajetória de vida Dona Myriam teve algumas vezes que morar em casas de outras pessoas. Nessas situações era sempre extremamente cooperativa e respeitadora da privacidade de quem nos recebia. Ainda hoje, morando em Maceió com meu irmão e minha cunhada, cuida de manter suas coisas sempre em ordem, não opina sobre a rotina e a administração da casa e ajuda nas tarefas domésticas quando os empregados estão ausentes. Em Taperoá recebeu Anísia e Von na nossa casa com muito carinho e delicadeza. Elas gostavam de morar conosco.

Mas foi o episódio da onça que fez mãe e filha darem muita risada juntas quando se aproximava a hora de se despedirem em Aracaju. Em Taperoá a luz elétrica se interrompia às 22:00 h. A partir dali, só vela e candeeiro para dar conta da escuridão. A rua ficava um breu. Aconteceu que chegou à cidade um treinador que ganhava dinheiro exibindo uma onça numa jaula. E um belo dia o treinador desapareceu. Então circulou o boato de que ele fora devorado pela onça que se soltara da jaula ganhando algum esconderijo na cidade. A partir daí, toda vez que faltava a luz, algum engraçadinho ficava na praça gritando: "Olhe a onça!" Por muito tempo as crianças tiveram medo de dormir e serem engolidas.

Nós sempre gostamos muito de animais e em Taperoá tivemos Trumman e Merza. Dois cachorros. Dona Myriam lembrou que quando moramos numa casa que tinha um primeiro andar espécie de mezanino bem em cima dos aposentos onde Lula dormia com Von, Trumman gostava de lá subir e por uma fresta no piso fazia xixi bem em cima de Lula. O negócio virou um verdadeiro ritual para o cachorro. Nem eu nem Dona Myriam lembramos que solução os adultos da casa encontraram para o caso.

Muito divertido foi o dia em que Lula com apenas dois anos e muito zangado com minha mãe fugiu de casa correndo em direção à loja de "Seu" Pequenito e quase foi abraçado por um tamanduá. Taperoá tinha Dona Adiles e Dona Lélia. Duas irmãs, senhoras adoráveis, donas da farmácia. Tinha "Seu" Amorzinho. Um senhor amolador de tesouras e facas que morava isolado num morro. Tinha Dona Bela que vendia uma inigualável goiabada cascão. Tinha Isabel Grisente (já se viu sobrenome igual?) dona de uma fazenda de cravo da Índia que dava emprego a muita gente que se ocupava de catar os cravos e colocar em esteiras a secar nas portas das casas, perfumando a cidade. Tinha Dona Ziza. Uma senhora muito doce que nos levava a passear na sua fazenda para comer jabuticaba e banana seca ao sol. Lá ocorreu a experiência de vermos, justo no dia previsto para o fim do mundo em que chovia torrencialmente, uma vaca no espelho de um guarda-roupa. Essa história eu já contei a vocês em outro "Blá, blá, blá..." 

Como vocês podem ver, viver em Taperoá nos permitiu ter experiências que beiravam o realismo fantástico de alguns escritores latino-americanos. E Dona Myriam, com apenas vinte e poucos anos, tirava partido disso com a sensibilidade e o humor que nos entretinham tornando ter morado naquela cidade uma oportunidade de enriquecimento da qual até hoje sentimos enorme saudade. Saudade maior é a que sinto agora da minha mãe que está em Aracaju se recuperando de uma cirurgia. Mãezinha querida, você vai sair logo dessa!! Oxalá nos vejamos em breve!!
                                                                                                     Marcia Myriam Gomes.  

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