segunda-feira, 10 de novembro de 2014

10/11/14                                           MULHER  PREVENIDA

Cara leitora, caro leitor,

Por conta de uma indisposição gástrica, não pude enviar ontem a crônica domingueira. Então dou seguimento hoje à série narrativa intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe" com o propósito de fazê-los conhecedores das idiossincrasias de Dona Myriam Urpia, essa mulher maravilhosa, às vezes surpreendente, às vezes desconcertante com seus expedientes de pobre de grana e rica de espírito, nunca medir esforços para proporcionar alegrias a seus filhos, aos amigos de seus filhos e a quem mais chegasse. Eram todos muito bem vindos.

 Dona Myriam é às vezes brava, principalmente quando rimos das suas peripécias. Mas depois da braveza ela ri junto. Ri de si mesma. Assim tem sido nesses últimos dias em que estando em Aracaju na casa de minha irmã mais velha aguardando o dia da cirurgia, entre uma reza e outra ela se ocupa despachada e mandona de arrumar e rearrumar sua bagagem, dispensando a moça que minha irmã contratou para ajudá-la, "porque faz tudo de qualquer jeito". Por conta disso ela e minha irmã brigam e depois acaba tudo numa risada.

A propósito de mãe, quero lembrar a todos que no sábado passado, dia 8 de novembro foi aniversário de 80 anos de uma senhora não sem razão, chamada Linda, mãe de Denise, uma leitora do "Blá, blá,blá..." que tem se revelado uma joia de amiga com seus retornos sensíveis ao que escrevo, particularmente ao que escrevo nesses tempos recentes sobre Dona Myriam.

Também quero parabenizar a todos que compareceram ontem, dia 9 à inesquecível feijoada do Instituto Viva Infância, regada ao som de bandas maravilhosas. Se você foi, com certeza comeu do bom e do melhor, encontrou um pessoal muito bacana e, principalmente, contribuiu para o sério e consequente trabalho do Viva Infância, cuja causa é a criança.

Agora sendo bem cafona para disfarçar a comoção, digo que meu coração se abre como uma bonita caixa artesanal para acolher com enorme gratidão todas as manifestações, na verdade inúmeras, de leitores, amigos e colegas que estão na boa torcida pelo sucesso da cirurgia de Dona Myriam, minha mãe. Cada pessoa que torce, é uma centelha de esperança e alegria no seio de toda a nossa família. E, crédula ou não, será lembrada nas orações de Dona Myriam, que é católica fervorosa e se prepara com serenidade para a cirurgia, segundo ela mesma diz, confiante na vontade de Deus. Mas vamos à história  esperando que minha mãe ao lê-la, dê boas risadas e só pra fazer uma gozação, possa dizer: "Quem conta um conto, aumenta um ponto". Ela adora ditos populares.

                                                                    MULHER  PREVENIDA

Estávamos no início da década de 70. Itaparica era uma bucólica cidadezinha cheia de casas de pacatos veranistas, protegidas pela sombra de mangueiras seculares. O mar, indo e vindo meio preguiçoso, batia na amurada erguida ao redor da cidade enquanto pessoas acorriam ao ancoradouro para receber os visitantes que chegavam no navio. Chegava-se a Itaparica de navio. Nem pensar em Ferry Boat. Passavam o veraneio na cidade de Itaparica famílias mais ou menos abastadas. Não era o caso de Dona Myriam e seus filhos. Mas felizmente, além do nome da cidadezinha, Itaparica era também o nome da Ilha com praias encantadoras, por desbravar, ainda desertas. Assim tomamos conhecimento de Ponta de Areia.

Àquela época, Dona Myriam já era escrivã de uma Vara de Família no Fórum, com muito esforço comprara um minúsculo apartamento de conjunto habitacional, e até sobrava uma graninha para proporcionar férias a seus filhos. Então alugou uma modestíssima casinha de veraneio em Ponta de Areia, na Ilha de Itaparica. Ponta de Areia pelo menos em passados anos recentes, tornou-se lugar muito aprazível, cheio de restaurantes de boa qualidade, iates de grande porte transportando turistas de posses, luxuosas casas de veraneio e um ir e vir de carros de passeios que chegam até a ilha pelo Ferry Boat. Mas não era essa Ponta de Areia que frequentávamos no início da década de 70.

A nossa Ponta de Areia era praticamente ainda uma aldeia de pescadores, com uma ou outra casa de veranista mais abastado. A casa que alugamos era muito rudimentar. Para vocês terem uma ideia, o banheiro não tinha água encanada. Para abastecê-lo precisávamos pegar água na cisterna. Naquela época os pescadores cediam suas casas aos veranistas, para terem uma renda complementar no verão. Então era tudo de uma simplicidade só. Tínhamos três quartos. Dona Myriam, festeira e generosa, gostava de levar para o veraneio os amigos, namorados das filhas e namorada do filho. Então era um festival de colchonetes com muito improviso para acomodar todo mundo. Mas nos divertíamos e como!!!

Naquele primeiro ano que fomos a Ponta de Areia, a diversão começou bem cedo, nos preparativos da viagem.O meu namorado, que adorava uma farra e era muito brincalhão, logo que começaram os preparativos, começou a atiçar a sogra com gozação, dizendo que queria ver o que ela ia aprontar daquela vez. E ela respondia sorrindo: "Rapaz, você não brinque comigo e me aguarde. Você, guloso do jeito que é vai ser o grande beneficiado. Mas prepare os músculos!"

 O lugarejo ficava quase vizinho à cidade de Itaparica e para lá chegarmos tomávamos o navio. Os saveiros iam pegar os passageiros no meio do mar. Obviamente, o navio não iria sair de sua rota para Itaparica, para deixar passageiros em lugarejos humildes como Ponta de Areia e Amoreira. Então descíamos do navio até os saveiros que nos aguardavam no meio do mar, para nos levarem até nosso destino. Descer do navio ao saveiro era um malabarismo somente possível graças ao cavalheirismo de braços fortes dos pescadores. Naquele tempo na ilha não tinha supermercado. Em lugares maiores podiam se encontrar alguns rudimentos de mercearias. Mas em Ponta de Areia tinha no máximo botequins.

 Dona Myriam cujos filhos estavam em férias escolares, tinha que ficar em Salvador durante a semana porque estava trabalhando. Iria a Ponta de Areia somente às sextas-feiras passar os fins de semana. Então precisava providenciar provisões que durassem pelo menos um mês. Transportar alimentos no navio sem braços vigorosos que pudessem aguentar a carga, era quase inviável. Mas para isso lá estava meu namorado assessorando sua sogra. Além de guloso, ele era o mais forte de toda a turma. À exceção do peixe que era comprado fresco na Ilha, tudo o mais tinha de vir de Salvador. Mas como embarcar no navio tantas provisões? Seriam volumes e volumes de frutas, legumes, verduras, cereais, conservas, ingredientes para sobremesa, material de limpeza, etc, etc. Se vocês se lembram do episódio da feijoada, já devem saber que Dona Myriam gosta de mesa farta. Ainda mais em veraneio. Não haveria sacolas que coubessem. Sem contar que com o tranco da viagem se rasgariam se perdendo o conteúdo.

No dia do embarque de navio que seria à tarde,  Dona Myriam diligente chamou a nós quatro e mais meu namorado e se mandou para o supermercado. Foi de táxi. E o táxi teve que ser um carro grande para transportar algo daquele tamanho. Era uma mala de couro enorme, num estilo bem nordestino. Quando vimos aquilo caímos na gargalhada. Dona Myriam, indiferente à gozação, fez as compras e acondicionou tudo lá. Na mala tinha muitos e muitos quilos. Dentro do supermercado aquilo já causou muito riso do pessoal que fazia compras. Onde já se viu? E Dona Myriam indiferente, na sua missão de fiel escudeira dos mantimentos do veraneio.

 Mala pronta, reforçada com barbantes e arames, Dona Myriam convocou meu irmão, meu namorado e mais alguns ajudantes do supermercado e lá se foram quilos e mais quilos de deliciosa comida para dentro do táxi.Dentro do táxi ela advertiu meu namorado que por ser o mais guloso e mais forte, era considerado o principal responsável pelo transporte da gerigonça. Ele, guloso e safado, aceitou com muito deboche o desafio. Principal responsável, mas quem disse que aguentava sozinho? Pediu auxílio à toda turma que embarcava conosco mas sem em momento algum abrir mão da empreitada. Comandava a operação e quando o cansaço ameaçava alguém, ele logo lembrava, lambendo os beiços, das delícias que nos aguardavam. Cozinhar, para nós não seria problema. Problema era o peso da gerigonça.

Com firme determinação a mala entrou no navio, dentro dele atravessou o oceano, desceu do navio para o saveiro, saiu do saveiro e a pé foi levada pra casa de veraneio em Ponta de Areia . Na descida do navio para o saveiro foram precisos muitos braços másculos. Na viagem a mala foi alvo de muita curiosidade. Todo mundo queria saber o que tinha dentro. Muitos não acreditavam quando se dizia que dentro havia mantimentos.

 Pois é. Quando a comitiva chefiada por meu namorado mala em punho adentrava a varanda da casa, houve um repentino titubeio, a mala se desequilibrou e o genro de Dona Myriam abandonou a comitiva e caiu no chão da varanda com o pé sangrando muito. Depois da heróica viagem, foi machucar o pé num caco de vidro logo na chegada. Seus companheiros aguentando o tranco conseguiram deixar a mala no chão e correram para segurá-lo. Ficaram meio preocupados.

 Felizmente o corte não era fundo, mas inspirava cuidados. E agora, o que fazer? Conhecedor da sogra que tinha, meu namorado logo sugeriu que abrissem a mala e a revirassem por todos os lados. Assim foi feito. Era muito mantimento se espalhando pela sala. Quando a comitiva já quase desanimava, alguém localizou lá bem no fundinho da mala um estojo de pronto-socorro. Sorriram aliviados. O genro, mesmo sentindo dor, comentou: "Dona Myriam jamais me faria voltar de navio a Salvador sem comer tudinho que trouxe naquela mala. O estojo foi a primeira coisa que comprou, bem na hora que vocês riam às gargalhadas". Dona Myriam, na hora que ler este escrito vai logo dizer algo assim: "Vocês até hoje riem da minha mania de carregar muita tralha. Não aprenderam que uma mulher prevenida sabe o que levar numa mala."
                                                                                       Marcia Myriam Gomes 

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