sábado, 29 de novembro de 2014

30/11/14                           CORAÇÃO  DESTROÇADO.

Cara leitora,  caro leitor,

Tenho o coração destroçado. Meu rosto, todo contraído, parece uma máscara. Esgarçado de dor. Por isso, decido que preciso escrever duas crônicas para esse domingo. Uma, para vocês, meus amigos queridos que vêm me acompanhando com delicadeza e sensibilidade desde o dia 30 de setembro quando recebi a notícia de que minha mãe tinha um câncer. Uma crônica para vocês com quem posso partilhar com liberdade minhas alegrias e dores com todo esse processo difícil.

 Como vocês sabem, a cirurgia de minha mãe foi bem sucedida, ainda que com a intercorrência da saída do dreno do lugar, que implicou em uma segunda cirurgia para recolocá-lo. Mas até a retirada do dreno prevista para a próxima terça-feira e em seguida todo o percurso pós-operatório até que ela fique plenamente restabelecida e possa voltar para a sua casa em Maceió, será um processo oscilante de júbilos e alguns percalços, ainda que seja enorme a minha alegria por Dona Myriam ter resistido a duas cirurgias. Por isso, recorro a vocês como meus interlocutores, com quem posso fazer um certo "desabafo".

Depois de feito o "desabafo", estarei melhor preparada para escrever a segunda crônica destinada a entreter minha mãe, narrando com graça e bom humor algum episódio que vivi com ela. Essa segunda crônica que não sem esforço sairá alegre e divertida, além de para minha mãe, será enviada também para os leitores do "Blá, blá, blá domingueiro..." que não são meus amigos, e para familiares com os quais não me sinto à vontade nem confiante para partilhar meus sentimentos mais verdadeiros. Será também publicada no Facebook, com a esperança de que meu cunhado Alfredo ou minha sobrinha Daniela, imprimam o texto para minha mãe ler. Assim, como vocês podem ver, tenho hoje um coração destroçado e me sinto completamente cindida.

Desde a quarta-feira passada quando retornei a Salvador depois de um período de uma semana em Aracaju acompanhando as duas cirurgias de Dona Myriam e vivendo um momento dramático de uma dinâmica familiar quase caótica, falei pela primeira vez com minha mãe na sexta-feira às 9:35 h da manhã. Parece que ela está por ordem médica proibida de falar ao telefone. Foi isso que lhe foi ordenado pelos familiares que ficaram cuidando dela depois que decidi retornar a Salvador.

 Eu não estava presente quando o médico lhe fez essa proibição e por isso, não a compreendo bem. Compreendo sim que ela deve falar pouco, somente com as pessoas que lhe fazem bem, se poupando do contato com interlocutores que se alonguem indevidamente no telefone. Compreendo que ela não pode manusear o telefone com a mão direita, do lado em que foi feita a mastectomia. Compreendo que ela precisa ser cuidada para se preservar ao máximo possível do risco de contrair uma infecção. Compreendo que ela precisa de cuidados físicos, mas sem que se negligencie a necessidade do cuidado psicológico. Não sabemos quanto tempo de vida ainda lhe resta e ao meu ver, ela não pode ser privada de receber o acolhimento e o amor dos que lhe são próximos. Acolhimento e amor que certamente muito auxiliam na sua recuperação. 

Minha mãe encontra-se muito deprimida. Chora inconsolavelmente por sentir-se dependente e queixa-se do fato de receber as prescrições médicas sob a forma de ordens autoritárias, às vezes sem o cuidado de persuadi-la com carinho e paciência. Encontra-se muito fragilizada emocionalmente e num certo estado confusional com lapsos de memória próprios de momentos pós-traumáticos. Embora extremamente dedicados, alguns dos meus familiares têm um nível de instrução precário, o que dificulta a compreensão mais sutil de como respeitar as ordens médicas  tendo jogo de cintura para orientá-la com carinho e acolhimento.

Quando às 9:35 h da sexta-feira ela me ligou, fiquei muito feliz e emocionada. Interpretei o fato dela ter feito a ligação como um possível sinal de que Dona Myriam havia sido liberada da "ordem médica" de não telefonar aos entes queridos. No telefonema ela estava com a voz boa, perguntou se eu estava bem e me disse que para ficar bem precisava ter certeza de que eu estava bem. Respondi que eu estava muito bem, comentei com contentamento que ela estava com a voz boa e perguntei se ela havia gostado da cuidadora que passara a noite com ela. O telefonema foi breve, mas me encheu de júbilo porque ela estava com a voz boa e porque julguei que a partir dali eu poderia então lhe telefonar.

Na noite de sexta-feira depois da hora em que ela costuma assistir à missa, então eu lhe telefonei. Chamei algumas vezes e ela não respondeu. Uma hora depois a cuidadora me ligou e passou imediatamente o telefone a minha mãe. Dona Myriam estava tristíssima, me disse que estava proibida de falar ao telefone por "ordens médicas", pediu que eu rezasse muito por ela porque está sofrendo muito e não sabe se vai suportar. Pediu muito que eu telefonasse a seu amigo Doutor Justino para agradecer pelo apoio e explicar que ela não pode falar ao telefone.

 Fiquei com o coração destroçado e chorei muito. Não sei quando poderei voltar a falar com ela. A comunicação familiar está muito truncada. Julguei que a minha saída de Aracaju agora nesse momento, contribuiria para deixar minha irmã e meu cunhado mais repousados e que contribuiria para que a dinâmica familiar pudesse ficar mais serena, diminuindo questões de disputas de poder e ciúmes. A saudade e a preocupação com minha mãe são enormes. Uma certa impotência me toma.

Na quarta-feira, 26 de novembro, último dia da minha permanência em Aracaju, passei  o tempo todo ao lado de Dona Myriam. Acompanhei seu café da manhã, levei-a ao banheiro e em seguida ela pediu para andar um pouco mas sentiu-se tonta. Ajudei-a a deitar-se e ela pediu que lesse para ela o livro sobre Dona Ruth. Ficou um pouco agitada tentando encontrar uma posição confortável na cama. Em seguida pediu para eu ligar para Doutor Justino. Liguei mas ele não estava.

 Ela permanecia deitada, eu segurando sua mão, dizendo repetidas vezes que a amo muito. Alfredo, meu cunhado, muito generosamente tirou algumas fotos de nós duas juntas e prometeu enviar para mim pela internet. Quando comuniquei na casa que preferia não almoçar antes da viagem (eu sairia para o aeroporto às 12:30 h) para usufruir ao máximo da companhia da minha mãezinha que só iria almoçar mais tarde, fui severa e duramente repreendida. Mantive minha decisão. Não almocei e fiquei todo o tempo que restava segurando a mão de Dona Myriam.

Acariciando minha mão, ela começou a se recordar de coisas que vivemos em Taperoá, cidade do interior onde vivemos quando eu tinha de quatro a sete anos. Eram lembranças boas. Às vezes ela chorava, às vezes sorria, sempre acariciando a minha mão. Me pediu que não deixasse de escrever e enviar o "Blá,blá,blá domingueiro...". Pediu que eu lembrasse a meus irmãos que quando ela falecer faz questão de ser sepultada aqui em Salvador, junto à sua mãe no Jardim da Saudade. Repetiu esse pedido umas três vezes.

 A minha hora de embarcar ia se aproximando, eu fazendo grande esforço para disfarçar a comoção. Sorrindo, ajudei-a nas boas recordações de Taperoá. Lembramos de Chico Lecó, um doido que andava pela rua com flores enfiadas nas narinas. Lembramos de "Seu" Aurélio dono do barco onde viajamos para Salvador para ela dar à luz Lilyana. Lembramos do episódio da vaca no espelho. Lembramos de Trumman, um cachorro que gostava de fazer xixi em Lula, meu irmão. Lembramos que Lula aos 2 anos escapou de casa correndo pela rua, sendo quase abraçado por um Tamanduá. Lembramos da fazenda de Isabel Grisente, onde tinha muito cravo da Índia. Lembramos, lembramos, lembramos. A hora insuportável chegou. Não sei como tive forças para soltar a mão da minha mãezinha. Entrei e saí do avião com o coração destroçado.
                                                                                                    Marcia Myriam Gomes.  

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