sábado, 1 de novembro de 2014

02/11/14                                    ADOÇÃO  PROVISÓRIA

Cara leitora, caro leitor,

Dando seguimento à série de crônicas dominicais intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe", escrevo hoje sobre uma experiência de infância que vivi quando contava em torno de dez anos. Experiência que dá testemunho de quão generosa e solidária é Dona Myriam Urpia, minha mãe. No caso particular dessa história, generosa e solidária com aqueles socialmente desfavorecidos. Experiência que me ensinou que se os abastados se gratificam se doam pouco, muito pouco, do muito que possuem, às vezes alardeando aos quatro ventos e sem modéstia o seu feito, há os desabonados que em silêncio, com toda discrição, repartem com seus semelhantes o pouco que têm e que dão aos seus filhos, encarando isso como um mero dever de cidadão.


 Nesses últimos dias insisto em dizer a minha mãe que nós, seus filhos, cuidarmos dela com todo carinho e desvelo inclusive, para quem tem possibilidade, com disponibilidade financeira, nesse momento em que ela vai se submeter a uma cirurgia, é uma parte infinitesimalmente mínima, insignificante, diante de tudo que ela nos deu e nos ensinou. E fico surpresa, talvez um pouco triste, quando ela me responde que por nós não fez quase nada, não fez mais do que sua obrigação.

 Surpresa e um pouco triste, porque em meio às adversidades e quando os ventos também sopravam a favor, por nós ela fez muitíssimo. Fez de nós cidadãos atentos ao que nos demanda o outro e ao que podemos oferecer com generosidade. Particularmente as suas filhas, eu e minhas duas irmãs, mulheres que tiveram sua dose de sofrimento e que não foram nem poupadas nem mimadas pelas circunstâncias da vida, fazemos, cada uma do seu ofício,  um exercício de cuidar do outro de alguma forma. Creio que assim cuidamos de nós mesmas. Nosso irmão por sua vez é muito cuidadoso com sua família nuclear. Esposa, filhos e netos são tratados com muito carinho. E a nossa mãe mora com ele. Para que cuidado maior? Somos cidadãos de bem e minha mãe não se apropria devidamente desse enorme feito. Não avalia o quanto há de si no que somos hoje. E o que somos hoje, muito graças a ela, é o melhor que podemos ser. 

Então escrevo e publico para ela ler. Para que todos saibam com que prazer relembro e conto as histórias que vivi com ela. Escrevo para oferecer a uma mãe como Dona Myriam, um texto depoimento de como vejo o que ela é para nós. Como ela é para o mundo. Escrevo para dizer como faz diferença para o mundo inteiro minha mãe existir. Quem sabe se eu fosse escritora, faria com a beleza de um  texto bem escrito, a proeza de a alegrar com tantas coisas bonitas que tem feito pela vida. Mas sou só uma "escrevinhadora". Contudo, ainda que apenas "escrevinhando", espero lhe dar um pouquinho só de júbilo de se ver em público nos seus feitos. Como uma simples "escrevinhadora", espero dar ao leitor a oportunidade de conhecer Dona Myriam e, conhecendo-a, se enternecer com histórias construídas por ela, como essa "Adoção Provisória". Então vamos à história!!!
        
                                                             ADOÇÃO  PROVISÓRIA
Wilson era um garoto pobre, muito pobre e tinha apenas três anos quando saiu cedo do seu casebre com sua mãe Terezinha para catar restos de alimentos na Feira de São Joaquim, em Salvador. Estávamos na década de 60. Naquela época, talvez mais do que hoje, a Feira de São Joaquim, onde se vendiam desde objetos de caxixi vindos do Recôncavo Baiano, passando pelo fumo de rolo até as mais variadas espécies de legumes, frutas e verduras era um imenso e importante centro de abastecimento de toda a cidade. Então o que dela sobrava como resto, alimentava inúmeras famílias desfavorecidas que não tinham o que comer.

Provavelmente, muito provavelmente, Wilson não tinha um só brinquedo. E acompanhar sua mãe na cata do que sobrava da feira tinha algo lúdico. Ou não? Será que Wilson sabia já aos três anos, estar naquela atividade a importância do seu ganha pão? Será que ele ajudava a mãe na coleta das sobras ou só se entretinha assistindo-a na ingrata tarefa? Ninguém para responder. Será que ele tinha mesmo três anos? Ninguém para responder. Naquela manhã em que saiu cedo com sua mãe, Wilson foi aparecer sozinho e desamparado no Juizado de Menores e não veria nunca mais Terezinha. Não retornaria jamais a seu casebre. Conforme relato do guarda que o trouxe ao Juizado, Wilson, sozinho, em meio aos restos da feira, assistiu a sua mãe morrer. Terezinha faleceu (de fome?) de um mal súbito no meio da feira. Ninguém para socorrer e Wilson sozinho.

Chegou no Juizado trazido pelo guarda com algo de aterrador no seu rostinho. Depois de ouvir a sua  traumática história, uma auxiliar de cartório ajoelhou-se no chão e dele se aproximou. O garoto amuado com um pânico indescritível na fisionomia, recuou. Não chorava. Não dizia uma palavra. A auxiliar de cartório o tocou nos cabelos. Ele recuou. Ela percebeu no rosto do menininho um ar de quem procura. Então perguntou se ele queria água. Ele respondeu: "Telezinha caiu". Ela novamente se aproximou e o tomou no colo. Ele aceitou. Ela perguntou quem era "Telezinha". Ele respondeu de novo: "Telezinha caiu". A auxiliar de cartório providenciou algo para alimentar a criança e se informou com o guarda sobre mais detalhes da sua história. Tomou o menino nos braços e afirmou: "Telezinha é sua mãe, não é?" A criança balançou a cabeça afirmativamente e começou a chorar. Ela o acalentou sem saber ao certo o que lhe dizer. Àquela altura medidas judiciais estavam sendo tomadas para recolher a criança numa casa de menores.

A auxiliar de cartório foi até o juiz que era um sujeito muito humano e expressou seu desejo de levar o menino consigo para casa até que ele pudesse ser encaminhado para adoção. O procedimento não era muito regular, mas o juiz, compreendendo o drama daquela criança e quão danoso poderia ser para ela ser recolhida numa casa de menores, concordou com a auxiliar de cartório. Ela, infelizmente, não poderia adotá-lo. Tinha quatro filhos para manter com seu ínfimo salário e morava de favor num subsolo improvisado na casa de seus pais. A auxiliar de cartório ficou no Juizado cuidando do menino até que chegasse o fim do expediente e assim pudesse levá-lo para casa. Nesse intervalo conseguiu ouvir dele que se chamava "Uísso". Daí supôs que seu nome deveria ser Wilson e assim passou a chamá-lo.

Wilson foi muito bem recebido na casa da auxiliar de cartório. Seus quatro filhos adoraram ganhar um irmãozinho, ainda que soubessem que uma boca a mais na dificuldade em que viviam, significava comida de menos para cada qual. Não importava. Souberam pela mãe da dramática história da criança e o que mais queriam era acalentá-lo, proporcionar a Wilson todas as alegrias que supunham pudessem mitigar a dor da perda que sofrera. Logo improvisaram brinquedos para o garoto. Wilson ficou encantado com banho de chuveiro que não conhecia. Os quatro irmãos disputavam quem ia ter o privilégio de lhe dar banho. Era uma festa!! O garotinho se encantava com a espuma do sabonete que não queria parar de usar. Apaixonou-se por manteiga que chamava de "bantega". Wilson sorria, brincava. Mas quando vivia alguma pequena frustração precisava dizer: "Telezinha caiu."

Os filhos da auxiliar de cartório já compreendiam que quando aquela frase surgia, algo havia trazido a Wilson a recordação da sua grande dor. Então era hora de acarinhá-lo, acalentá-lo. Assim Wilson ia fazendo parte da família, adorou andar de ônibus e ficou deslumbrado com a praia onde interagia com outras crianças mais próximas em idade. Algum tempo passou e embora esperassem por isso, a auxiliar de cartório e seus quatro filhos ficaram muito tristes quando tiveram que se despedir de Wilson. Por iniciativa dela foi encontrado um casal sem filhos que encaminhou o processo de adoção da criança. Wilson passou a ser filho de advogados. Foi matriculado numa excelente escola particular. Sua primeira família adotiva estava triste, mas todos sabiam que o melhor estava sendo feito pelo garotinho. Na primeira noite em casa sem Wilson, quando se serviram de "bantega", os cinco choraram copiosamente.

Resolveram respeitar a decisão dos pais adotivos do garoto que preferiram que ele pelo menos por algum tempo fosse afastado do que pudesse lhe lembrar o passado. E tiveram que amargar a saudade de Wilson. Muito tempo se passou. A auxiliar de cartório tornou-se escrivã, comprou casa própria, alguns de seus filhos já frequentavam a universidade, quando um cartão postal dos Estados Unidos chegou para ela e família: "A tia Myriam, Sandra, Marcia, Lula e Lily, para lhes dizer da minha enorme gratidão e que continuo adorando manteiga".Wilson era um adolescente amado por seus pais bem sucedidos, estava fazendo uma viagem ao exterior e já não precisava esquecer seu passado.

Vocês já mais que adivinharam que aquela auxiliar de cartório era Dona Myriam Urpia, minha mãe. Pois é, leitores, minha mãe é esta. Minha mãe é assim.
                                                                                 Marcia Myriam Gomes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário