domingo, 5 de outubro de 2014

05/10/14                                              MAMA.

Não sei com que fôlego, escrevo. Numa tarde de sábado que levou para bem longe meus anseios de primavera, ouvindo no meu predileto canal Arte 1 uma sonata muito triste ao piano. Definitivamente hoje não há primavera em Salvador e chove. E venta impiedosamente no Morro do Gato. O fôlego vem do fato de ela ter tido fôlego de me telefonar de lá de Maceió, onde mora. Quantos e quantos quilômetros nos separam neste momento de dor? Não vejo a hora de ouvir ao vivo a sua vozinha sem fôlego. A asma a maltrata. Seu aparelho respiratório oscila como uma folha outonal ao vento. E sem qualquer razão, ao vento se desfaz em pequenos pedaços.

Me telefonou com sua vozinha de nada e até esboçou um sorriso. Disse que sua amiga de igreja de Aracaju lhe recomendou uma pomada milagrosa que aliviou a forte dor no braço. Dor no braço do lado em que foi feita a biópsia. Palavra sardônica. Palavra cruel. Palavra que não poupa quem está perto e poupa menos ainda quem está longe. Quem está longe e a quem nada mais resta senão se identificar sentindo uma forte dor no braço. Uma forte dor no braço que recusa interpretações. Hoje não quero saber de Freud ou Lacan. Dor de amor e forte no braço. Com sua vozinha de nada também conseguiu me dizer que está contente porque Rafael, meu filho adotivo, chega amanhã.

Contendo o choro e encenando uma boa inflexão de voz digo à Mama que colocarei Rafael ao telefone amanhã para falar com ela. Mama agradece. Mama é o modo carinhoso com que trato minha mãe, desde que a descobri diversa da mãe que eu pensava ter. Faz tempo isso. Faz, felizmente, muito tempo que a descobri diversa. Faz muito tempo que a redescobri. A mãe da minha adolescência e juventude que eu me permitia ter, jamais se queixaria de uma dor no braço. Talvez porque eu só pudesse enxergar a minha própria dor. Talvez porque ela estava tão ocupada em nos fazer sobreviver em meio a um deserto prenhe só de ausências, que ficavam confundidos amar e cuidar. Amar e prover. Era uma mãe de estranhamentos e um certo temor de minha parte.

De repente me vi uma mulher na maturidade e sem protestos juvenis ou julgamentos intelectualóides, me vi uma mulher com coragem de admirar e se enternecer com a sua forte religiosidade. Foi esse o caminho que escolheu para responder às indagações do por quê passou tantas privações na vida, teve um casamento infeliz, trabalhou duro na vida vendendo livro de porta em porta antes de se tornar uma escrivã competente e reconhecida, ficou viúva aos 40 anos, padeceu de sérios problemas respiratórios e na velhice ainda teve que ajudar financeiramente aos filhos. Admiro e tenho orgulho dos seus 40 cadernos manuscritos e muito bem redigidos com reflexões bíblicas. Admiro como na igreja se dedicou a causas sociais e fez uma imensidão de amigos que a respeitam tomando-a como referência. Há alguns anos atrás, fui assistir à sua ordenação como noviça carmelita e me senti pacificada com seu júbilo à moda de Santa Tereza D'ávila.

Quando a visitei em junho deste ano por ocasião de nossos aniversários, me disponibilizei a assistir à missa com ela diariamente na televisão. Desde o ano passado ela já não tinha condições de sair. Então assistíamos na televisão, religiosamente. Não há modo melhor de dizer que a amo. Há poucos anos atrás me confidenciou que seu maior pecado foi não ter nos dado a devida educação religiosa e nos ter deixado à mercê do ateísmo de nosso pai. Quando de uns tempos para cá a percebi perdendo forças, com a saúde fragilizada e sofrida por precisar ser cuidada, passei com regularidade a ler trechos da Bíblia para conversar com ela.

Foi um privilégio para mim poder fazer as pazes com essa mãe que tenho, e poder dispensar a ela meu amor e meu cuidado do modo que ela necessita, compreende e agradece. Chove torrencialmente lá fora. Tenho a alma úmida e meu braço dói, bem do lado em que ela fez a biópsia. Palavra sardônica. Palavra cruel. Como encontro fôlego para escrever e não deixar os leitores na mão? Urge não deixar os leitores na mão. Não sei o que será no próximo domingo. Não sei, mas talvez precise deixar os leitores na mão. Preciso fazer esforço para não me deixar na mão. Partilho com os amigos a minha dor. Recebo muita solidariedade.

 Me machuca muito constatar que não podemos fugir às contingências e que a vida da gente muda radicalmente de significado a uma frase dita, uma sentença proferida. E essa distância geográfica, como me tortura!! Não vejo a hora de estar ao lado de minha mãe. Amanheço e anoiteço pensando nas horas do dia em que posso falar com ela. Cada minuto, cada segundo conta não sei em que direção. Estou diante do imponderável. Essa semana que entra será decisiva quanto a saber por quanto tempo poderei ouvir a sua vozinha sem fôlego. Está difícil trabalhar. É uma corrida contra o tempo.

 Penso todo o tempo no que posso lhe proporcionar de melhor. E quase nada posso. Penso no que se passa com ela, em como ela está, enquanto escrevo. Penso se devo estar escrevendo assim aos meus leitores. Ficarão sabendo que a saúde da minha mama está por um fio. Isso me constrange. Não  estarei devassando a sua privacidade confessando aos leitores o que não posso confessar a ela própria? E se vierem manifestações de solidariedade, será que quero recebê-las? Os  meus leitores costumam me escrever e eu respondo. Será que vou querer responder desta vez?

Mama. Palavra. Qual a sua extensão? Da sua extensão depende o tempo em que terei minha mãe comigo. Não quero dizer mais nada. Não quero escrever mais nada. Peço licença aos leitores para me retirar. Peço licença para chorar e para pedir ao Deus que ela acredita tanto, que não a deixe sofrer. Ainda que para isso tenha que me deixar só. Só dessa solidão que não tem escrita que dê jeito.
                                                                            Marcia Gomes. 

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