sexta-feira, 5 de setembro de 2014

07/09/14                                             O  CISNE  VIVO.

Quinta-feira passada. Prenúncios no ar de primavera à moda baiana. Um dia que não chega a ser acalorado, mas sem os ruídos do vento úmido entrando na varanda do meu apartamento. Para matar as saudades, saio com uma amiga para almoçar num restaurante português aqui perto. Comida honesta, bom atendimento. Como isso me agrada!!

 O papo entre amigas foi delicioso. Falamos até um pouquinho do encontro da turma de Psicologia que acontecerá em 1 de novembro. Falamos do quanto me surpreendeu um escritor que respeitamos muito, haver sugerido que eu publique num livro algumas crônicas selecionadas. Falamos também das nossas preocupações com a saúde uma da outra. Fomos ao banco e estacionamos na vaga para idosos. Com essa amiga eu posso ser eu mesma. Prescindimos de máscaras sociais. Como isso me agrada, me enternece, me gratifica!!

De volta para casa, vou cuidar de fazer alguns contatos para o encontro da turma de Psicologia e me chega a notícia desconcertante. Diante da notícia perco muita energia e não quero fazer mais nada, a não ser falar com Sandra, minha irmã mais velha. Me sinto um tanto em estado de choque. Tento o telefone uma, duas, três, vezes. Sandra não responde. Não sei e não gosto de enviar mensagens. Me sinto desolada, envelhecida e solitária com a noite que chega. Finalmente Sandra atende o telefone e posso partilhar a minha perplexidade.

Conhecemos Cilinho quando eu contava apenas 10 anos, morando no bairro de Nazaré. Nossos pais ainda viviam juntos. Cilinho ficou amigo de Sandra através de um namorado dela que era nosso vizinho. Morava na Rua da Poeira. Que poético esse nome de rua! Tudo que diz respeito a Cilinho me soa poético. Com a separação de nossos pais mudamos para o bairro da Graça e Cilinho muda da Poeira para o Canela. Era só descer um pedacinho da Euclides da Cunha e já estávamos no apartamento dele, um adolescente de rosto delicado, olhos pequenos amendoados, testa muito grande e voz grave-doce.

 Filho caçula temporão de Dona Lurdes que o enchia de mimos. Colega de Sandra no Severino Vieira, os laços de amizade entre os dois se fortaleceram com a intermediação de Bento, agora já outro namorado de Sandra com quem ela se casou e teve minha sobrinha Daniela, de quem Cilinho viria futuramente tornar-se padrinho. Ele e Bento eram unha e carne. Cúmplices nas malandragens que faziam com as garotas, onde um estava, o outro estava também.

Me vejo então já com 12 anos, corpo de mulher feita sob a ebulição dos hormônios. Por conta do namoro de Sandra e Bento convivo com Cilinho que devia ter já uns 17 anos.  Trabalhava na prefeitura e gazeteava trabalho e aulas para fazer poemas e tocar violão. Era sensível, inteligente, delicado e muito sedutor. Eu estava com meus hormônios à flor da pele, também era sensível, delicada, inteligente e não resistia a uns versos bonitos feitos só pra mim. Como resistir àquela voz grave-doce ao som de um violão bem tocado? Quando Cilinho me olhava passava um choque elétrico em todo meu corpo. Eu tinha medo daquela intensidade. Ao tempo em que queria, fugia dele. Houve uma noite em que ele tomou minhas mãos nas suas e me disse estar se cansando das minhas escapadelas.

Fomos milhares de vezes juntos à praia do Barravento. Dançamos a noite toda de rostos colados na festa do Manoel Devoto, onde eu estudava e era presidente do grêmio. Íamos sempre com Sandra e Bento à casa de uma amiga no Cabula comer Maniçoba. Partilhei com ele a minha descoberta de Drummond e de Fernando Pessoa. Aprendi com ele a recitar uns versos de Augusto dos Anjos que terminavam assim: ... "no desespero dos iconoclastas, quebrei a imagem de meus próprios sonhos".  Também, acho que de Raul de Leone: ..."que o cisne vivo cheio de saudade, nunca mais cante  nem sozinho nade, nem nade nunca ao lado de outro cisne". Cantamos juntos muitas canções da época. 

 Eu me enfeitava toda e me perfumava para estar com ele, mas nem um beijo na boca eu permiti. Cilinho era o primeiro grande amor da minha vida com direito a todos os clichês. Ele se cansou de me esperar e se interessou por outras garotas. Eu, uma donzela abandonada, chorei lençóis de lágrimas e escrevi milhões de versos.

Vieram novos amores pra mim já sem medo, mudei de casa mais uma vez, e, embora ele continuasse amigo de Bento, as contingências da vida nos separaram e ele saiu do meu coração e do meu campo visual.

Quando estava cursando Psicologia na Ufba, encontrei na faculdade o colega Caria. Pequena a aproximação. Batíamos papo de corredor, nunca estudamos juntos, frequentávamos galeras diversas. Muito boêmio, Caria era próximo dos simpatizantes da psicanálise, gostava muito de tomar uma cervejinha, fazer versos e tocar violão. Eu era praticamente noiva nessa época. Caria, se não me engano, já separado da primeira mulher, namorou e casou com uma moça chamada Cléia ou Icléia, ou algo assim. Morou na Vila Matos, se não me engano teve filhos estudando na Via Magia. Mas eu e esse colega de faculdade vivemos sempre meio afastados e chegou um tempo que mais nada soube dele.

Até que chega a quinta-feira passada e nos contatos de preparação do encontro da turma de Psicologia, uma colega me diz que o colega Caria já há algum tempo não está mais entre nós. Transmutou-se em poeira com toda a poesia a que esta palavra tem direito. A minha memória retrocedeu num torvelinho desamparado de recordações.

 Por que a perda de um colega com quem não tive ligação mexeu tanto comigo, trouxe a inexorabilidade da morte pra tão perto de mim, me fez sentir uma solidão infinita diante do anoitecer? Não parece simples responder. Vocês já devem ter adivinhado. Aqui vai mais um clichê: "o primeiro amor a gente nunca esquece". É que o nome de Cilinho era Otacílio Mendes Caria.

 Pra mim, na quinta-feira passada, quem morreu não foi Caria. Foi o meu Cilinho. Morreu um pouco da Marcia de 12 anos que subia num caixote conclamando os colegas pra derrubar a ditadura. Morreu um pouco da Marcia que tendo medo do amor, tremia de amor. Porque qual um cisne solitário sobreviveu a Otacílio uma senhora que perdeu a única possível testemunha do que é apaixonar-se  pela primeira vez sem coragem de beijar na boca. Como eu gostaria de ter podido sentar com ele e relembrar aqueles tempos!

"Que o cisne vivo cheio de saudade, nunca mais cante nem sozinho nade, nem nade nunca ao lado de outro cisne". Obrigada, Cilinho, por me iniciar, com suavidade, com a delicadeza da poesia, no tortuoso percurso dos desfiladeiros do amor.
                                                                                                                   Marcia Gomes

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