domingo, 14 de dezembro de 2014

14/12/2014    Cara leitora, caro leitor,

O Natal vai chegando. As compras consumistas me consomem a ponto de fugir quilômetros delas. As convenções oportunistas do comércio capitalista não me fisgam. Mesmo que fisgassem, profissional autônomo não recebe décimo terceiro salário e essa época de festas de fim de ano os pacientes debandam, fazendo longos recessos de férias. Então ainda acho mais verdadeiro e oportuno o Natal com Jesus menino numa manjedoura.

Tenho muito a celebrar e a agradecer à vida neste fim de ano. Meu filho adotivo tirou uma excelente nota na primeira etapa do concurso para professor da UFSB, a universidade de seus sonhos. Dona Myriam Urpia, minha mãe, mulher admirável por sua força criativa diante das adversidades, vai se recuperando bem das duas cirurgias a que se submeteu. Finalmente já tirou o dreno. Não sabe ainda se já retorna a Maceió porque ainda sente dores e está vulnerável para encarar a viagem.

Quero agradecer muito a Graça, sua cuidadora diurna, pela dedicação, carinho e competência que não mede sacrifícios para dispensar a Dona Myriam. A minha querida irmã Sandra e a meu cunhado Alfredo, que a receberam na sua casa desde o dia 4 de novembro, com uma inacreditável disponibilidade amorosa, jamais encontrarei palavras ou gestos para agradecer. Também sou muitíssimo grata a meu irmão Lula e a Lindaura, minha cunhada, por tudo que têm feito por minha mãe.

Eu vou sendo acalentada pelo forte desejo de estar com Dona Myriam em breve. Enquanto isso não acontece, além dos telefonemas diários que diminuem só um pouquinho a saudade, para diverti-la e me sentir presente no seu cotidiano, continuo escrevendo a série de crônicas intitulada "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". O episódio narrado hoje, ocorrido quando eu tinha 2 anos, provavelmente me foi contado por ela, mesmo que eu teime em pensar que me recordo daquele dia. Bom, deixemos de lero lero e vamos à história!!!

                                               PAPAI  NOEL,  PAPAI  DO  CÉU.

Segundo me contam, eu nasci chorona. Para alguns, era uma criança dengosa e chata. Fortes, não é, esses significantes? Para outros, era uma criança muito sensível, que demandava um certo cuidado especial. E para Bantu, apelido de nossa empregada que fazia as vezes de babá, eu era menina chegada a um "calundu".

Na verdade, eu nasci prematura de peso e muito doentinha. Tive duas pneumonias que quase me levaram à morte nos primeiros meses de vida e não me alimentava bem. Tinha Lió, minha madrinha que me paparicava muito e também de certa forma recebi atenções especiais de meu pai, que era médico. Minha mãe me enchia de cuidados para eu não adoecer.

 Longe de mim fazer interpretações de colorido psicanalítico sobre o fato de eu ter sido uma criança que chorava muito, que estranhava num primeiro momento situações novas, um tanto assustadiça. Psicanálise feita com rigor, escapa de querer adivinhar o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha. De mais a mais, aqui sou apenas uma "escrevinhadora". Portanto deixo as construções fantasmáticas a respeito das razões de eu ter sido assim ou assado, para outro espaço mais apropriado.

Estávamos em 1955. Morávamos com minha avó paterna e mais a família de tio Zezito, na Rua Pedro Júlio Barbuda no bairro de Nazaré. Não preciso dizer porque vocês já sabem, mas digo que éramos pobres. Não me lembro se quando eu contava 2 anos meu pai já estava formado em medicina. Mas com certeza ainda precisava recorrer a seus talentos de fotógrafo para manter a família.

Havia chegado o mês de dezembro e lá em casa sempre se celebrava o Natal. A árvore já estava armada com todos os presentes e saíamos à noite para ver a iluminação da Avenida Sete e da Rua Chile, num tempo feliz onde se consumia muito menos e não havia ainda a praga dos shoppings centers.

 Numa dessas idas à rua, provavelmente sem a minha presença, é que meus pais tiveram a ideia de comprar o insólito objeto. Era um grande cartaz colorido com uma vistosa figura de rosto de Papai Noel. Talvez pensassem com aquela figura em reforçar para mim o conceito sobre o bom velhinho. Segundo me contam, àquela altura, eu já era capaz de responder "Papai Noel" quando me perguntavam quem viria entregar na noite de Natal os presentes que estavam na árvore.

O cartaz era muito bonito e vistoso. Um Papai Noel com gordas bochechas bem rosadas e olhos azuis muito vivazes. Para fazerem surpresa, enquanto eu dormia colocaram a figura do bom velhinho na parede de meu quarto. Não sei o que pensavam os adultos. E a gente lá sabe, o que pensam os adultos? Provavelmente pensavam que ao acordar eu seria capaz de reconhecer o Papai Noel e ficar feliz de ver sua figura, associando-a com todos os presentes que me traria no Natal.

Ledo engano. Eu era mesmo chegada a um "calundu". Quando acordei e bati os olhos na figura, abri o maior berreiro. Entrei em pânico. Vieram Lió, meu pai e minha mãe me consolar explicando que aquele era o bom velhinho do Natal que nos entregaria os presentes. Eu chorava mais ainda. Fiz birra, esperneei. E dizia: "não, não, não quero Papai Noel". Todas as técnicas de persuasão foram usadas sem sucesso. Enquanto  o cartaz permaneceu na parede eu chorava desconsoladamente e até vomitei.

Depois do transtorno gástrico, resolveram tirar o cartaz da parede, rasgar e jogar no lixo. Ainda assim eu não aquietei. Segundo minha mãe me contou, somente quando ela ficou sozinha comigo, me pôs no colo e me acariciando falou baixinho que Papai Noel era na verdade um mensageiro de Papai do Céu, eu comecei a me acalmar e parei de chorar.

Quando Dona Myriam ler essa crônica e comentar comigo, sendo ela uma religiosa que tomou o Hábito de Carmelita, provavelmente fará uma interpretação religiosa do acontecido. Poderá até supor que eu já tivesse um conceito e bom conceito de Papai do Céu. Eu tenho cá minhas dúvidas. Acho que para uma criança de 2 anos, ainda tanto faz Papai Noel ou Papai do Céu. Ainda mais naquele tempo em que meus pais não eram religiosos. Posso estar enganada, mas penso que o segredo do meu apaziguamento está na fala baixinha de Dona Myriam me dando colo, independente do que ela estivesse me dizendo. A voz de Dona Myriam sempre foi tão musical !!!

Acho que ainda hoje quando tenho meus medos dessas estranhas figuras de "Papai Noel" que assustam o imaginário dos adultos, como a violência contra os socialmente desfavorecidos, contra os que padecem de sofrimento psíquico, contra os negros, os indígenas, os deficientes, os idosos, as mulheres, as crianças, ou mesmo quando sou assombrada por meus fantasmas existenciais, corro para o telefone para ouvir a voz musical de Dona Myriam. E fica tudo certo, não importa o que ela diga. O que importa é a voz.
                                                                                                            Marcia Myriam Gomes. 

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