sábado, 27 de dezembro de 2014

28/12/14  Cara leitora, caro leitor,

É o ano de 2014 que se despede. Ano cheio de altos e baixos. Passei o primeiro semestre tomada pelo encantamento com a psicanálise que sempre se renova em mim. Nem sempre pude estudar tanto quanto gostaria. Alguns problemas de saúde próprios da idade trouxeram percalços. Mas ainda assim, senti-me animada com o esboço de possibilidade do amor voltar a bater à minha porta. Vivi muito a falta das minhas sessões de supervisão. Quando a gente chegou há relativamente pouco tempo na psicanálise ( trabalhei em torno de 30 anos como terapeuta cognitivo comportamental), o investimento no tripé formação teórica- análise pessoal- supervisão tem que ser muito alto para se dar conta de fazer uma clínica com rigor. E às vezes, a depender do momento, tem que se fazer escolhas, nem sempre as mais agradáveis.

Veio o segundo semestre. Eu ainda encantada com as vivificantes surpresas do discurso amoroso, fico sabendo que Rafael, meu filho adotivo que esteve aqui em outubro, vai se submeter ao concurso para professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, que tem um belíssimo projeto de funcionamento. Já está se submetendo e tem se saído muito bem. Isso me enche de ânimo e alegria. Também me alegrou muito participar dos preparativos do encontro das turmas de Psicologia de 71 e 72 que aconteceu em novembro, ao qual, infelizmente, não pude comparecer.

No final de setembro tudo se modifica quando recebo a notícia da doença de minha mãe. Isso ressignificou todas as coisas. Entre o diagnóstico, a cirurgia e o processo de recuperação que está em curso, me vi uma nova pessoa. Uma urgência de resgatar na minha relação com ela o que pudesse haver do tempo a ser aproveitado minuto a minuto, me fez ficar quase que inteiramente com a atenção voltada para Dona Myriam. Não vejo a hora de chegar em Maceió e abraçá-la, poder passar o Ano Novo com ela, assistir a todas as missas que ela quiser e a que tem direito e, principalmente, auxiliá-la nas atividades de rotina que ainda não pode fazer sozinha.

Nesse processo difícil pelo qual passa minha mãe, houve sofrimento meu e dos meus irmãos e familiares, muita solidariedade dos amigos, muitas descobertas gratificantes sobre o outro, muito medo e sobretudo uma aguda tomada de consciência sobre a questão do idoso. Hoje não vou escrever sobre "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Não vou escrever sobre coisas do passado, porque vivo agora, no presente, uma história com minha mãe que sinto vontade de escrever sobre alguns aspectos como o meu texto de finalização de ano para vocês.

Como pude passar tantos anos pouco atenta e talvez até pouco sensível às questões que cercam a vida dos idosos? Dou-me conta hoje que essa que vos escreve é uma pessoa idosa. Somente há poucos meses me vi seriamente defrontada com o fato de que em torno de setenta por cento dos meus pacientes estão na faixa dos sessenta anos.

Talvez a primeira vez que me vi envolvida e de perto com os dilemas que cercam a vida de um idoso, foi quando uma amiga minha muito querida, passou a sofrer e se inquietar com o quanto é desafiador para nós, já na faixa dos 60 anos, viver em relação aos pais essa difícil inversão de papéis da posição de como filho ser cuidado, para a posição de filho cuidador. Quando minha mãe começou a envelhecer, já vivíamos geograficamente distantes e nosso contato ficava restrito às visitas que eu lhe fazia, em geral em viagens de férias. Às vezes só pude acompanhar o processo de envelhecimento de minha mãe por telefone, sem esse corpo a corpo tão necessário para que a nossa ficha caia.

A experiência vivida por minha amiga com seus pais, particularmente com sua mãe, pessoa por quem eu nutria grande afeto e que foi afetada por uma doença devastadora vindo a falecer em curto espaço de tempo, mexeu muito comigo. Isso aconteceu no ano passado. Acompanhar o sofrimento da minha amiga quando a minha mãe, com a saúde fragilizada e já apresentando alguns lapsos de memória começou a despertar em mim um enternecimento muito grande e um desejo de cuidar, contribuiu muito para que em 2014 eu fosse visitar Dona Myriam em junho, época de nossos aniversários, enxergando-a de um outro lugar. Felizmente fui visitar minha mãe em Maceió num momento em que pude lhe dispensar todo meu amor e carinho. Nem de longe eu poderia imaginar que em setembro estaríamos vivendo esse turbilhão de emoções e apreensões em torno do seu adoecimento e da perspectiva da cirurgia.

Quando visitei minha mãe em junho, pude observar mais de perto o quanto a condição de pessoa idosa que já não pode dispor da própria vida do modo que quer a estava afetando. Conversou muito comigo sobre seu constrangimento e aborrecimento por precisar deixar o seu dinheiro sob o controle de meu irmão, com quem mora. Confia irrestritamente nele, mas sofria por não se sentir mais dona de suas decisões. Falou também o quanto se sentia acanhada por não poder mais ajudar integralmente minha cunhada nas tarefas de casa aos domingos, quando não têm empregados. Confessou seu sofrimento em se sentir dividida entre se alegrar com a presença dos bisnetos na casa e num momento seguinte sentir uma certa irritação com a sua natural movimentação, o que às vezes a levava a ficar recolhida por muitas horas no seu quarto.

Havia muitos momentos em que interagia muito alegre e carinhosa com Iasmin, a sua bisnetinha mais nova. Fez questão de recordar com muita alegria e vivacidade episódios vividos conosco, seus filhos, quando éramos crianças. Sua memória para eventos do passado está impecável e ela sentiu muita necessidade de relembrar traquinagens e peripécias nossas, como se quisesse se deixar tomar inteira por aquelas imagens.

 Falou de um parente seu pela linha materna que viu na televisão e que vivia em Maceió, e confessou que gostaria de encontrá-lo para partilhar com ele alguns documentos de família. Eu a auxiliei na tentativa de localizar o parente que é professor da universidade. Minha mãe oscilava entre os momentos em que mostrava empenho na busca e os momentos em que fazer aquela pesquisa a deixavam cansada e irritada. Algum tempo depois, felizmente, encontrou o parente e partilhou o que queria com ele.

Não conseguia mais manipular o computador nem entrar no Facebook. No dia do seu aniversário eu entrei na sua página e li para ela as inúmeras mensagens de congratulações que recebeu. Fez questão de telefonar a cada um agradecendo. Agora recentemente, quando estive em Aracaju por ocasião da sua cirurgia, fiquei sabendo que ela já esqueceu suas senhas. Uma pena...Ela me pediu tanto para lhe mostrar as fotos do casamento de Ana Clara (filha de uma amiga minha muito querida por Dona Myriam) e acabou não podendo ver. Gosta muito de ler o "Blá, blá, blá...." com as "Histórias Que Vivi Com Minha Mãe". Mas para isso ela precisa que alguém faça a gentileza de imprimir.

Creio que todos vocês sabem que minha mãe ter mais recentemente tomado o Hábito de Carmelita e ter vivido uma intensa atividade religiosa num período mais remoto na Paróquia de Santa Luzia em Aracaju são os acontecimentos centrais da sua vida. Encontrou na religiosidade um alento e uma resposta satisfatória para suas indagações existenciais. Tem em torno de 50 cadernos manuscritos com suas reflexões bíblicas, um dos quais está agora comigo, presenteado por ela. Na visita que lhe fiz em junho, confessou-se apreensiva quanto ao destino que seria dado a esses cadernos quando ela não estiver mais conosco. Falou muito em morrer e no receio de em vida ter cometido vários pecados. Ficava feliz quando eu dizia que pela mãe dedicada que sempre foi, seus pecados, certamente inocentes, estavam com certeza todos perdoados.

A confrontação com a morte em uma pessoa idosa deve ser um processo doloroso e controvertido. Minha mãe oscilava entre momentos em que dizia saber estar sua hora chegando e isso ser um alívio, e momentos em que era visível seu medo de morrer. Muito difícil para mim saber o que dizer numa hora dessas. Felizmente a religiosidade traz o necessário conforto de saber que as questões da vida e da morte estão na mão de Deus. E era isso que eu tentava dizer à minha mãe, nos momentos em que sentia que estava vivendo um dilema entre viver e morrer.

 A perspectiva de perda de uma mãe é uma experiência muito penosa. Perdi o meu pai quando eu tinha apenas 21 anos e julgava ter sido um processo muito traumático. Hoje já não sei mais. Me parece muito difícil perder uma mãe aos 62 anos. Talvez, um tanto enrijecidos pela idade, estejamos menos aparelhados para vivermos processos de luto, além de nesta circunstância sermos confrontados com a nossa própria morte.

Agradeço à vida estar podendo encerrar esse ano junto de minha mãe. Agradeço à vida ter tido tempo de resgatar a nossa relação que foi no passado às vezes conturbada. Agradeço à vida, quando ouço a sua vozinha frágil, só sentir ternura, vontade de acolher, saudade. Sim, sinto muita saudade. E sofro também quando sinto seu humor um tanto deprimido. E sofro também de saber que ela ainda sente dor no lugar onde foram feitos os cortes cirúrgicos e padece por ter que lidar com algumas limitações às quais está ainda submetida. Por exemplo, se constrange muito por não poder ainda tomar banho sozinha e ter que "dar trabalho" a meu irmão e minha cunhada.

 Imagino que uma das coisas que entra em questão quando já se é idoso e se tem uma mãe idosa, é avaliar o quanto pudemos elaborar e deixar para trás conflitos familiares, mal entendidos, ruídos na comunicação. Quando um ente querido adoece gravemente, naturalmente devem vir à tona questões familiares mal resolvidas. Particularmente disputas e ciúmes entre irmãos, tentativas de uns exercerem poder sobre outros, jogos de predileção e preferências, falta de diálogo e de partilha nas decisões. Deve ser muito, muito solitário enfrentar o adoecimento o mesmo a perda de uma mãe quando os irmãos são desunidos.

Por isso, tenho torcido muito pela minha união com meus irmãos. Tenho pensado em qual pode ser a melhor forma de nos conscientizarmos que nesse processo de recuperação de uma cirurgia delicada, nossa mãe precisa muito que nos mantenhamos sensatos, cordatos, amorosos uns com os outros, dedicando cada um a ela o melhor de si, tentando ao máximo transcender questiúnculas de desavenças familiares, de discórdias entre irmãos, de prevalência do poder de um sobre o outro. Acho que tentar não se deixar tomar por essas questões é o projeto de Ano Novo que deixará Dona Myriam melhor e que nos deixará bem cada um com o outro.

Evidentemente tenho meus projetos profissionais, culturais, sociais e amorosos para 2015. Desejo que todos vocês realizem os seus. Entretanto o meu projeto maior é tentar me manter unida de igual para igual com meus irmãos para que possamos dispensar a Dona Myriam todo carinho e cuidado que ela precisa e merece. Esse texto depoimento de hoje vai ser publicado no Facebook para que minha irmã Lily que mora em Rio de Contas tenha acesso. Fora isso, será enviado somente aos amigos íntimos e àqueles que vêm acompanhando com carinho o processo de recuperação de Dona Myriam. No dia 4 de janeiro estarei em Maceió na companhia de minha mãe. Por isso não escreverei "Blá, blá, blá..." FELIZ  ANO  NOVO  A  TODOS !!!!!!!!!!!!!!!!!

                                                                 Marcia Myriam Gomes.  

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