domingo, 21 de fevereiro de 2016

23/08/2015                                        SÓ  MATIZES

Somatizar, só matizar, só matizes dessa dor que não me dá trégua. Como um degradé cromático do mais claro ao mais escuro, vai passando por escalas de intensidade de um pequeno sinal ao tom mais agudo. Mas hoje não quero falar de dor. Dor na coluna, não. Da coluna que sustenta o corpo, não. Sinto como se tivesse um corpo insustentável e um atrito de ossos inconciliáveis. Ainda outro dia disse e falei fartamente de sentir ter a bunda fora do lugar. Costumo sentir a bunda fora do lugar por falta de sustentação na coluna. Costumo sentir a bunda fora do lugar. E eis que sinto como se  o outro me espreitasse com o dedo em riste apontando a inadequação, a impropriedade. Sou imprópria a ponto de não caber na demanda do outro. Estou sempre a dever o que de mim se espera. Sou afeita a silêncios, a recolhimentos. Não sei o que dizer em conversas de elevador. Eleva dor. No encontro efêmero com o outro, antes de poder dizer a que vim, o esboço de conversa finda e de mim resta uma bunda atópica. Atípica.

Mal comecei a escrever e sou interrompida por uma chamada telefônica de minha mãe. De memória curta, pergunta se hoje já falou comigo. Falou há alguns minutos atrás. Sinto um transbordamento de ternura por essa mãe que apenas com 82 anos, já se perde no tempo e no que nele fez. Ainda outro dia fiquei a cismar um pouco tristonha ao ver uma mãe mais velha que a minha, ainda senhora de seu tempo, desenhando, pintando e confeccionando belas caixas com fotos de Freud e Lacan, para vender. Minha mãe, além das tarefas de rotina que já faz com uma certa dificuldade, consegue apenas se entreter assistindo à missa na televisão, à novela sobre a história da vida de Moisés e telefonando às filhas distantes. Mas embora com lapsos, sua memória não a deixa esquecer de sempre me perguntar se a minha auxiliar doméstica veio trabalhar, se deixou comida pronta para mim, se me tem feito companhia. A memória não a trai no seu sempre presente anseio de cuidar da filha. Como se isso estivesse registrado nos ternos redutos do afeto, desafiando nosologias e diagnósticos. Ainda assim, sinto-a volatizando-se, evanescente. E penso que urge ir até lá onde ela está, antes que o tempo implacável nos atraiçoe. Digo a ela que a amo muito, que Deus a abençoe, e de repente sinto como se essas palavras cavassem um fosso de ausência por eu não poder partilhar o seu cotidiano.

Feita esta digressão com o meu saudoso amor filial, volto para meu texto. E me pergunto, como me atrevo aos domingos a escrever essas garatujas literárias, que nem literárias são, porque da escrita nada sei. Apenas faço dela um exercício de fazer contato com leitores e amigos para dizer de algo que me escapa à fala. Quanto mais velha fico, mais sou afeita a silêncios, a recolhimentos.Não me ocorre falar num bate-papo polêmico a defender posições pró ou contra alguma coisa. Não me anima o desejo de convencer alguém de nada. Cada um tem as suas posições sobre política, religião e até sobre se a psicanálise resiste aos apelos imediatistas do mundo contemporâneo globalizado. Quando assisto a debates calorosos, às vezes penso que os debatedores estão numa corrida narcísica querendo que seja a sua a opinião que prevalece. Parece que cada um quer  se revelar mais informado, tendo acesso às novidades que circulam nas redes sociais. Não me dá gosto falar sobre a notícia que foi veiculada pela rede Globo, falar sobre a vida privada do outro, sobre quem está namorando ou não está, sobre um vestido da moda que foi adquirido. Alguns parecem ter urgência em falar sobre a última mercadoria que compraram não importa se há quem ouça. Tenho os meus pensares, as minhas convicções e cada vez mais me reservo o direito de falar sobre isso com aqueles que sinto semelhantes. Deixo-me mais a escutar e então escrevo. Escrever sem nada saber de escrita não será banalizar o trabalho sério dos que são escritores?

Feita essa pergunta que não cabe a mim responder, me ponho a desconfiar que entre mim e os escritores há de comum, mesmo que eu não saiba fazê-lo, o impulso imperioso de esvaziar a palavra do sentido trivial. Deixar-se submeter à palavra sem quaisquer garantias. Entregar-se à imposição da palavra aceitando ser por ela subornado sob pena de ficar esvaziado de toda consistência ontológica. Para escrever, coisa que não sei fazer, é preciso ser palavra. Felizmente nesses últimos dias estou sob o impacto do sério fazer poético. Compareci ontem ao lançamento do livro de poemas do amigo Carlos Machado, pessoa de genialidade assombrosa, que ainda que tente, não consegue esconder com a sua modéstia. Machado é daquelas pessoas que falam com propriedade sobre quaisquer assuntos relevantes, sabendo relatar experiências sem cair na trivialidade. Em "Tesoura Cega", seu livro, Machado diz coisas como essas : "Como dizer? Menino, os mapas não são roteiros de achamento, mas tênues direções de vento para quem só busca o buscar." Talvez de uma certa tonalidade niilista, este poema de irrepreensível drummondiana parcimônia de palavras, me lembra o que diz a psicanálise sobre a inalcançável busca do objeto perdido. E mais ainda, pra mim que tenho fixada na memória a recordação dos pombos compondo a paisagem urbana de São Paulo, o registro de um momento de observação da cena onde se entrevê o marco da resistência: "O pombo coxo resiste. Para, bica, olha em frente, apoiado sobre o coto de uma perna sem pata." Na minha leitura, nesse poema a condensação de palavras imprime uma absurda dramaticidade à cena observada. E ainda sobre o amor, Machado diz: "O amor inventa todos os fogos/desanda todos os pêndulos."

Junto a "Tesoura Cega" me chega por esses dias o "Escritos extraídos do silêncio", manuscrito do livro de poemas de uma amiga querida. E aqui volto à coluna. Não a que sustenta o corpo, mas a coluna cheia de volteios barrocos da igreja de São Francisco. "Escritos extraídos do silêncio" me faz pensar na coluna cheia de volteios barrocos. Como um exercício sonoro de ruptura de entranhas, esse livro tem palavras curvas desenhando um dizer feminino como nesse verso: "...enredada sem esperança em sutilezas...." ou então: "A poesia envia-me sinais, raio de luz em sótão empoeirado." "Moro na poesia, sem escolha."A inexorável melancolia de sentir-se habitada pela palavra poética. Dois poetas, cada qual com seu estilo, iluminando meus dias com palavras esvaziadas do sentido trivial. Tensas, intensas, tonalidades em gradação do estar no mundo subvertendo a ordem natural das coisas. Matizes. Só matizes.
                                                                                                                                     Marcia Gomes.

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