domingo, 10 de maio de 2015

10/05/2015                                     MÃE

Não vi abril chegar com seus matizes de púrpura. Quem me disse que abril tem matizes de púrpura não importa. Não importa. Perdeu-se nas brumas melancólicas do passado, disto ficando apenas a sombra do objeto recaindo sobre o eu, como terá dito meu caro Freud num dos seus muitos momentos poéticos. Um objeto do qual resta uma sombra identificatória recaindo melancolicamente sobre o eu. Objeto perdido que me ensinou sobre os matizes de púrpura. Objeto inalcançável clamando dentro de mim como se alcançável fosse.

Não vi abril chegar com seus matizes outonais. Sequer me dei conta que estamos no outono. Ouvi ruídos distantes de acontecimentos trágicos no Nepal. Não assisti ao "Sal da Terra". Recebi visitas acolhedoras e também telefonemas porque estava com dor. Voltando a Freud, se não me engano ele disse algo importante sobre a tonalidade narcísica da dor. Se se está com dor, todo investimento de energia se volta para ela e o resto fica desinvestido. Estive com muita dor e a sua devastadora tonalidade narcísica. Perdi-me do outono.

Quando ergo o olhar para o céu e vejo esse azul nem um pouco aceso, revestido de cinza e emoldurando os prédios, sinto como se não tivesse estado aqui. Escrevo num momento em que não sinto dor e posso fazer contato com cores, sons, odores. Posso ver a rua, o ir e vir dos passantes, posso rever os amigos, estudar e ir fazer a unha. Sim, não se pode fazer a unha com dor. 

Não vi maio chegar com seus ameaçadores índices pluviométricos. Ouvi ruídos distantes sobre a força devastadora da chuva destruindo os casebres do povo. Maio está aqui enquanto estive desmaiada. Não se assustem. Não desmaiei. Apenas quase fico sem maio. Felizmente não fiquei sem maio. Se ficasse não me daria conta de que hoje é o dia das mães. Dia de Dona Ruth. A querida Dona Ruth que nos deixou saudosos. Dia de Dona Alice. A querida Dona Alice que nos deixou saudosos. Muitos dos meus amigos mais queridos, já sexagenários, estão hoje saudosos das mães que já se foram. Mas há aqui conosco Dona Linda, mãe de uma amiga muito gente boa. Mas há lá na Colômbia, Marina, a verdadeira mãe de Rafa, de quem me considero a brasileira mãe adotiva.

Há cada uma de nós, podendo ser mãe a seu modo. Ser mãe tem matizes de púrpura. É como abril. São tantos os matizes e tão variada a púrpura, que fica uma não compartilhável melancolia de se saber única tendo aprendido a exercer a maternagem com algum objeto inalcançável cuja sombra recai sobre o eu. Creio que digo sandices. Deixa eu ver se me faço mais compreensível. Ser mãe tem seu lado solitário melancólico do intransmissível. Não será o extremo dessa intransmissibilidade que acomete os que sofrem de depressão puerperal? Creio que digo sandices.

Deixa então que eu fale de uma mãe em particular. A quem mesmo sentindo dor eu imploro que me deixe ir a Maceió para matar as saudades. E ela não permite, não autoriza, me deixando sentir um intransponível abismo entre mãe e filha. Me deixando sentir que não a alcanço por mais que escreva "Blá, blá, blás domingueiros" com episódios sobre ela. Não a alcanço. Como se de repente tivéssemos sido deixadas por um Deus impiedoso e inclemente numa torre de Babel. Aí bate o medo da sombra do objeto recaindo sobre o eu. Aí dói o medo do esforço vão de reparar o irreparável. E sinto uma distância quilométrica me enregelando os ossos.

No dia seguinte a mãe em particular é outra. Me fala sorridente do cachorro de seu filho que numa traquinagem canina lhe roubou a escova de dentes. Sorri com ternura porque seu filho tem quatro cachorros que o divertem muito. E pede que eu seja cúmplice do seu sorriso de ternura. E sou. E lhe digo: "mãezinha, te amo muito!" E prometo que irei à missa no próximo domingo. Não há prova de amor maior a ela do que ir à missa. Em outro dia seguinte ouço a sua vozinha sumida dizendo em tom triste que não amanheceu bem. Então me deixo envolver por uma culpa devastadora por ter pensado em intransponível abismo entre mãe e filha. E penso em conseguir lhe dizer alguma coisa sábia que a anime. Não consigo. Não tenho quatro cachorros. Ainda que tivesse...

Penso no que lhe direi hoje ao telefone. Já tem lapsos de memória importantes e talvez não se recorde que é dia das mães. Talvez eu tenha lhe lembrar sobre isso. Será que vai gostar do presente que pedi à minha cunhada que lhe comprasse? Penso em lhe dizer alguma coisa bem bonita que a toque. Mas o que? Não sei ainda. Há 62 anos venho tentando saber o que posso fazer para tocá-la. Então vou deixar para saber o que dizer bem na hora, torcendo para dar sorte. Mas o que estou pensando aqui agora e que não direi pelo menos nesses termos,  é que ainda que haja o abismo intransponível, ainda que haja a torre de Babel, há muita coisa especial em mim que saiu igualzinho a ela. Ser mãe tem matizes de púrpura. E eu também tenho. Ou será que digo sandices?
                                                                                                    Marcia Gomes. 

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