sábado, 28 de setembro de 2013

Texto de 02/07/2013

" Blá,blá,blá domingueiro...." e...."Alice no país das maravilhas".


Era de poucos estudos. Nem poucos nem muitos são necessários para modelar um vestido. Modista de categoria.Sabedoria popular? Muita! Se alguém pretendia dela obter algo indevido, não titubeava em dizer: "Se é por isso que seu gato mia, dê pelanca."Tentasse você pisar em seus calos por ter lhe feito um favor, logo proferia:"Não é por eu comer toucinho que chamo porco de nhô, nhô".Se alguém se atrevia a avançar nas intimidades antes do casamento (naquele tempo isso era impensável) Dona Alice logo sentenciava: "Merendou antes do recreio". Assim, Ana Helena, sua filha, e uma enorme turma de colégio que frequentava sua casa para estudar e para se banquetear com os quitutes de Dona Alice- mais para se banquetear-cedo se iniciaram na arte dos ditos populares.
 
A casa, no bairro da Barra, muito, mas muito simples mesmo,era um entra e sai, um ir e vir de clientes do ateliê de botões e costuras. Dona Alice era uma trabalhadora incansável. O barulho da máquina de costura era quase ininterrupto. Definitivamente não gosto de ir até lá depois que Dona Alice se foi. Sinto falta do barulho da máquina. Sinto falta daquela figura mínima (da altura de Edith Piaf?), encurvada pela postura à máquina, daquela risada farta se chocando contra um olhar quase melancólico.Pela movimentação do meu aniversário em torno de um quadro de Valdemberg intitulado "Flor de Algodão", vocês já sabem que gosto de quadros.Tenho no meu consultório um quadro de Modiglianni. Uma mulher com os olhos vazados de tristeza. Sabem aquele olhar parado de quem espia incansavelmente para os "Brejos D'alma" (nome de uma obra de Drmmond)? Tenho o olhar de Dona Alice bem na parede de meu consultório. Dona Alice era de uma tristeza risonha.Frequentei aquela casa muitos e muitos e muitos anos. Nunca a vi chorar.Sinto falta de alguém que me chame "Marcinha" e que faça o bife exatamente no ponto que eu gosto. Dou uma sorte danada com as mães.De meus amigos.
 
Quando fui embora para São Paulo viver todas as delícias que tive direito e comer todos os pães que o diabo amassou, a maior loucura (mesmo!) de toda a minha vida, Dona Alice me fez um vestido de presente para o frio. De flanela, fundo côr de rosa cheio de bolinhas, mangas compridas e muitos babados.Embarquei com ele. Amei, como amei, estudei, como estudei, me encantei com a vida cultural do Sul Maravilha.Fui bem recebida no mercado de trabalho.Trabalhei, como trabalhei! Viajei muito também.Tomada pelos desencantos de um amor perdido, 11 anos depois desembarquei. Com ele.O vestido. Nunca mais o usei. Sua função se havia cumprido.
 
No dia 29 de março não sei mais quantos anos faz, a maldita "Diabética" (nas palavras dela) levou Dona Alice. Para onde? Para nunca mais sarapatel pelas madrugadas de estudo dos colegas de Ana Helena. Para nunca mais feijoada com pirão feito na hora, para nunca mais caruru de São Cosme para quem quiser entrar na casa. E que vatapá, meu Deus!
 
Era um domingo quando recebi no meu apartamento a notícia do mal feito da maldita "Diabética". Abri meu guarda-roupa, olhei demoradamente para aquele vestido, muda testemunha do meu louco,devastador ir e vir pela vida,colado à minha pele no embarque e no desembarque. Dobrei,embrulhei num papel de presente, desci o elevador e dei o embrulho de presente à primeira mulher" rechonchuda" que passava pela rua. Caí num pranto convulso. Só a vida de Dona Alice no seu ir e vir na máquina de costura,modelando a veste da dor e da alegria de tantas mulheres (lembrei agora da letra de "Mulheres de Atenas" de Chico), justificava eu guardar comigo aquele vestido. Agora pertencia a outra, talvez tão louca quanto eu nos seus desvarios amorosos, para usufruir a obra de uma modeladora de sonhos, de uma escultora do imaginário feminino.Dona Alice era uma mulher que se realizava realizando sonhos de mulheres, mulheres tal e qual ela era......."tecem pra seus maridos"......por isso nunca a vi chorar.Por isso,  exemplo de "savoir faire" com seu sintoma, ela deve estar no país das maravilhas.  Tecelã do desejo feminino por mais louco que possa parecer: 

              "Oh, you can't help that", said the cat:"we're all mad here.I'm mad.You're mad"."How do you know I'm mad?" said Alice."You must be",said the cat, "or you wouldn't have come here" (in Wonderland)-- Lewis Carroll --Alice's adventures in Wonderland.
 
                                                                                                                         
     Marcia Gomes.

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