sábado, 28 de setembro de 2013

Texto de 20/05/2013 

“Blá, blá, blá domingueiro...” e... Visita às cartas do "Professor" à Dona Ruth.


À Lúcia e seu amado.
 

Escrevo.Não é sem dor.A última frase do livro "As Palmeiras Bravas" (adorável para quem aguenta) de William Falkner, é :"melhor a dor ao nada". Era setembro talvez do ano passado.Este ano eles completam 60 anos de casados.Eu também completo. 60 anos de idade. Na verdade, pra mim que me penso (logo não sou) analista, melhor dizer descompletamos.60 anos a dois. Eles. 60 anos dos quais nem sempre a dois, eu.Voltemos a talvez setembro do ano passado.
 
Eu desci do taxi.Não sem dor, circundei o olhar por onde se localizava o prédio onde mora o casal. Bairro da Graça.Lá, vivendo os piores anos da minha vida, eu deixei uma cândida recordação das elegantes senhoras de cabelo azul. Aos dez anos de idade, eu jamais havia visto uma senhora de cabelo azul. No bairro da Graça, elas proliferavam. Eu, quando uma lágrima ameaçava despencar naquelas calçadas um tanto nobres , como em talvez setembro do ano passado, circundava o olhar e me detinha entretida nos cachos tingidos daquelas senhoras. Cada um se entretém como pode, não é?Meu pai, muito irônico que era, se entretinha falando das manchas azuis nos absorventes das moradoras da Graça. Sempre o azul, não é? Não há melhor remédio pra enxugar os olhos da filha ou do pai,quando submetidos a uma separação compulsória.
 
Êpa! "Cadê" as cartas? Calma aí....sou prolixa.Talvez setembro do ano passado. A nobreza decaiu.Que ótimo! E o bairro da Graça, muito movimentado, mas muito  mais enternecedor agora, parece ter sido escolhido por moradores idosos para abrigar suas histórias de amor,não importando a cor dos cabelos das senhoras. Eu não tenho mesmo mais porque chorar quando estou por lá......Só se for de comoção com as cartas. 
 
Já estou transpondo o portão do prédio.Me perco tentando localizar o elevador.Ando no elevador em tensa expectativa.Dona Ruth ao telefone me disse que ia mostrar uma carta.De quem pra quem eu não sabia. Advertiu-me que eu poderia dizer das minhas impressões, sem contudo divulgar o conteúdo.

A moça que trabalha na casa me abre gentilmente a porta. Digo que estou sendo esperada por Dona Ruth. À entrada escuto a moça dirigir-se ao "Professor", anunciando a minha chegada e consultando quanto a me levar até sua esposa.Penso assim:"há um homem nesta casa e sua palavra tem valor de lei". Não sei ao certo porque isso me alegra. Me encanta. Agora, também não sei porque, meus olhos se enchem de lágrimas. Ele, com gentileza e alegria ordena à moça que me faça entrar, mas não aparece.Penso assim:"Ele faz o lugar da lei, respeitando que ela tenha com alguém assunto entre mulheres e receba suas próprias visitas".

Me sinto adentrando um reduto de amor indevassável. Passo pela sala e o cumprimento com carinho filial (outra vez as lágrimas). Ele interrompe a leitura e me acolhe com carinho paternal.Se não disse, digo que o "Professor" é um poeta, grande escritor e intelectual. Sinto-me muito bem acolhida nesta casa cheia de livros.
 
Acho que foi setembro do ano passado. Sinto muita dor nas costas, na perna esquerda. Disfarço para que não me vejam claudicando.Tenho usado esse estratagema frequentemente. Com o meu estratagema, sou levada pela moça ao quarto do casal.Dona Ruth está sentada numa cadeira de balanço com um livro de Josué Montelo aberto sobre a cama. Me recebe efusivamente.Muita alegria. Enquanto ele tem um olhar extremamente amoroso e conversa contida, ela é faladeira.Diz que posso me sentar à cama.Olho à minha direita e vejo sobre uma banqueta um caderno com textos datilografados. Nada suspeito. Ela, velozmente, volta a me contar a história do relacionamento amoroso do casal. Eu escuto entusiasmada fazendo curtas intervenções.Na verdade, tenho o coração aos pulos, estou louca para ver a carta (de quem?) e espero ansiosa que a conversa tenha uma pausa.


À medida que ela vai falando, minha cabeça começa  a viajar a respeito de como será esta carta:um texto à moda de Barthes?Parece pouco provável para 1952.Romeu e Julieta? O Banquete? Um pouco distraída do que ela está me dizendo e mergulhando fundo na minha viagem, de repente escuto:"não vai ver?" Ela aponta para o caderno sobre a banqueta e diz:"pegue!", em tom quase de ordem.Eu fico totalmente "atabalhoada"."Será que ela esqueceu da carta e está me dando este caderno de alguma outra coisa para ler?".Pego o caderno com péssima coordenação motora, estabanada, desapontada.Folheio a primeira página. O título:"Prezada Senhorita Maria Ruth de tal".Sinto um frio correr pela espinha (vejo a vulgaridade desta expressão:"sinto um frio correr pela espinha". Já leram "Sabrina", "Júlia", coisa e tal?lá está esta expressão querendo dizer:"fui tomada de emoção indescritível".Não levem a mal.Afinal, não sou escritora. Sou "escrevedora".Ou, se preferem, "escrevinhadora"). Um prazer doloroso estrangulou minha palavra, engoli em seco e me calei.
 
Dona Ruth:"Marcinha (assim ela me chama), este caderno são todas as cartas que José Newton escreveu para mim antes de nos casarmos. Nós mandamos imprimir e demos um exemplar a cada filho (são nove) com a recomendação de que só podem ser publicadas depois da nossa morte. Estão aqui para você ler todas."
 
Eu cheguei cedo.Deviam ser 9:00h da manhã. Terminei de ler pontualmente ao meio dia, quando o "Professor" chegou discretamente à porta e anunciou:"o almoço está servido".Antes de sentarmos à mesa, só houve tempo de perguntar:"por que só constam do caderno as cartas do "Professor"? as da senhora, não?" Resposta de mulher amada onde esta condição é razão de júbilo: "Marcinha, é ele o poeta.Temos que respeitar. Lendo as cartas dele você não matou todas as curiosidades a respeito do que é o nosso amor? Então, para que as minhas?".
 
Ao chegarmos à sala para almoçar, noto que a mesa é relativamente grande mas há duas cadeiras juntinhas em destaque indicando os assentos do casal. Ele puxa a cadeira para ela sentar, espera auxiliando que ela se sirva. Cada bocado intercalado por um olhar. Entreolhar-se.Homem, mulher.
 
Chegando em casa, choro para me acabar.As menopausadas sabem que esta tendência lacrimosa se acentua quando se aproximam os 60. Choro para me acabar. O que dizem as cartas? Não posso contar.Suficiente dizer que na primeira o tratamento é "Prezada Senhorita Maria Ruth de tal" e na última, "Minha muito amada Ruth".Vocês podem imaginar a delicadeza da gradação de tratamentos engendrando a intimidade que vai se insinuando por entre as cartas?Como um "fading". Não o dos behavioristas. O "fading" dos roteiristas de cinema.



Marcia Gomes           

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