Texto de 19/08/2012
“Blá,blá,blá
domingueiro...” e... Entrevista com Dona Ruth - "Amor, de novo" (plagiando Doris Lessing).
Olhem eu aqui de novo! Escrever, mal ou
bem, exercício de me dizer ao outro. Tal e qual barro, palavra. Eu, oleiro,
modelando antes que transborde a alma.
Um abraço,
Marcia Gomes.
Eu, nascendo. Eles, contraindo matrimônio.Ou seria melhor "fazendo
núpcias"? Eu, cinquenta e nove anos de vida. Eles, cinquenta e nove anos
de casados. No ano em que nasci aconteceu tão densa,cálida e delicada
manifestação do amor? Quanta honra! Ainda que nem de longe nos
conhecêssemos. Eu, vocês já sabem:aquela "escrevedora" que volta e
meia aparece nos fins de semana alugando sua paciência de leitor. E eles? O
"Professor" e Dona Ruth. Sim. A ele quase todos chamam
"Professor". A mim, somente ele chama, com toda pompa e cerimônia de
"Professora". É que ele preferiu não registrar meu pedido de demissão
da UFBA em 1985. Na vida do "Professor" não entra certa sorte de
eventos.
Aconteceram próximos em datas a comemoração dos 90 anos do
"Professor" e o aniversário de casamento.Aí me deu uma vontade danada
de escrever sobre esta história de amor..Não sei por que (não é muito a minha
cara) resolvi que gostaria de ter acesso a alguns fatos da história. Em razão
disso, achei por bem entrevistar um dos dois.Escolhi Dona Ruth.Ela é mais
faladeira e informal..Ele seria mais comedido nas palavras.Talvez até ficasse
um pouco constrangido.
Por que eu resolvi escrever justo sobre esta história de amor? Existem tantas,
não é? Não consigo me dar ao trabalho de responder a esta pergunta. Não sei, não
sei. Essa história, em particular, sempre me encantou. Vou deixar com vocês o
trabalho. Suponham, hipotetizem o que quiserem sobre as razões da minha escolha.
Liguei para Dona Ruth e ela se prontificou a dar a entrevista. Ah, a
entrevista! Sem medo de exagerar, eu diria que o relato de Dona Ruth faria
inveja a Roland Barthes. Toda entusiasmada, parecendo aquela jovem em 1953, ela
falava com toda a propriedade de uma mulher apaixonada."Fragmentos de um
discurso amoroso". O primeiro olhar. Que os amores desta época (somente
dessa época?)se alimentam primeiro de olhares e palavras.Neste caso, com
certeza, com uma carga de erotismo muito maior do que em alguns casais
contemporâneos que às vezes passam longo tempo sentados numa mesa de
restaurante, sem se olhar, sem dizer palavra.Ainda hoje, cinquenta e nove anos
depois, o olhar entre Dona Ruth e o "Professor" transmite, a quem
assiste, toda a intensidade erótica tendo como sub texto: "eu sou seu
homem e você é minha mulher".
O volteio
que ela, travessa, deu na praça. Uma espécie de Marilyn Monroe no Ceará. O
rodopio que o pegou de jeito. Tocado pela graça juvenil da sensualidade da
moça.A troca, que parecia interminável de cartas entre o Ceará e a Bahia. São
ambos cearenses. Mas o "Professor" andava por aqui a trabalho. O
"Professor", como muitos sabem, é poeta, escritor possuído pelo dom
da palavra bela e correta. Será que existe palavra correta? Aqui eu enveredaria
pelas considerações sobre poesia e palavra, sobre escrever e a dor que lhe é
peculiar ingrediente, coisas que algumas (poucas) pessoas que me lêem reclamam
de não entender. Não quero. Quero hoje um texto simples, fazendo as vezes
de uma espécie de crônica.
Se não me engano o "Professor" preside uma Academia de Letras aqui em
Salvador. Só para vocês terem uma idéia do modo como ele brinca com seu dom de
palavras, eu soube pela sua filha que ele estava numa fila de uma dessas foto
copiadoras onde se faz impressão, xerox, etc. A funcionária se aproximou dele e
perguntou :"o senhor é cópia?" Ele, prontamente respondeu:"não,
sou original".Além de poeta é professor aposentado da UFBA e da
Católica. Dona Ruth, orientadora pedagógica aposentada,sempre acompanhou e
estimulou os talentos de seu parceiro.
Eu, sendo mulher, e mulher encantada com palavras (conheci um senhor que se
separou da mulher alegando que ela queria ser "emprenhada" pelos
ouvidos - desculpem a deselegância),ouvindo o discurso de Dona Ruth experimento
pela via identificatória talvez o mesmo frio na barriga, talvez o mesmo tremer
de joelhos vividos por ela ao receber e responder àquelas cartas.Em mim, coisas
da histérica.Também não quero enveredar por isso. Melhor deixar esse palavreado
para os dias úteis.As cartas estão todas guardadas com esmero. Ninguém tem
acesso. Quisera, quase como uma voyeur, me apoderar de uma só que fosse.Assim,
seria hoje outro o meu escrito, intitulado "A carta roubada", plageando
Edgar Allan Poe, Baudelaire e Lacan. Na verdade, nenhum dos três.Pelo que conheço
dos poemas do "Professor" a Dona Ruth, imagino que as cartas eram a
encarnação do desejo em palavras.Palavras muito diferentes do que às vezes
vamos escutar dos que pensam ser o desejo uma meia dúzia de vulgaridades
pornográficas.
Aí veio o pedido de casamento e o que só deve ser mencionado muito
discretamente:a interdição familiar.Dos amantes, antes que anunciado por Lacan
(1959) -- o amor foi inventado muito antes que a psicanálise-o exercício do
imperativo ético:"Não ceder do seu desejo". Dona Ruth me contou sobre
sua noite de núpcias de modo delicado, brincalhão e lisonjeiro com o seu
parceiro.
Depois de uma longuíssima conversa, que, volto a dizer, faria inveja a Roland
Barthes, dei por encerrada a entrevista. Toda satisfeita. Eu, supunha, quase não
precisaria escrever.Transcreveria a conversa.Foi aí que Dona Ruth me chamou
para o acerto de contas: "Marcia, o que nós tivemos aqui foi uma
confidência de mulher para mulher.Eu lhe contei quase tudo.Sei que você
gosta de escrever e escreve bem. Pode escrever à vontade. O quanto quiser. Pode
até escrever um romance. Mas publicar é outra história. O que se passa entre mim
e meu companheiro é de nossa intimidade.Publicar nossa conversa só se ele
autorizar".Resultado:fui proibida de publicar a entrevista. Não será esta a parte mais bonita
da história?
P.S.Em junho passado quando fez 90 anos o "Professor" foi presenteado
pelos seus filhos com livro da sua poesia:"Uma vida em poemas".Na
pag. 151 em "Cantos para Maria Ruth":
O tempo girava
e a praça era o mundo.
O sino era o canto
e a sombra o caminho
Súbito, o volteio e o perfil
feito riso.
Nem éramos, e eras,
e um dia seríamos.
Marcia
Gomes.
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