Texto de 30/07/2012
“Blá, blá, blá domingueiro..." e...”Primo amore"; amor primeiro.
Agenda é feita para ser obedecida,
desobedecendo. Pois é. Graças a sermos seres de linguagem. Na minha agenda
anotei:"Blá, blá, blá domingueiro...” e... Entrevista com Dona Ruth. Quem
disse que sai "entrevista com Dona Ruth?" Eu digo:
"sai".Ainda que sob outro título.Poder metaforizar. Como moedas que
são concebidas na "Casa da Moeda",palavras desapegadas de sentido,
intercambiáveis.
Melhor, para quem fala, escreve,saber que
sob o que quer que estejamos dizendo, estamos dizendo sempre a mesma coisa. Que
coisa? Não sabemos. Quando alguém me pergunta:"o que você queria dizer
quando escreveu aquilo?" Eu respondo,um pouco irritada:"Sei lá!"
Sei LÁ mesmo. LÁ onde você me
leu. Dó, ré, mi, fá, sol, LÁ, si,dó.
Será possível saber o que quer dizer a
melodia que toca na radiola de tio Zezito? LÁ , onde você a escuta. Onde eu a
escuto já é ACOLÁ. Palavra
é meio lagarta.Você tenta se apoderar, tomá-la para si,já virou
borboleta.Escrever,artifício de poder suportar tamanha efemeridade. Isso me
recorda "efeméride". O que quer dizer
"efeméride"?"Efeméride",palavra das antigas, não quer dizer
absolutamente nada. Quer ser dita, escutada, conotada.
Quando me recordo que presenteei uma amiga que estava se exercitando na pintura
com um livro intitulado:"Manual de Pintura e Caligrafia", dou muita
risada.Nem me dei ao trabalho de ler a orelha do livro? Foi aí, bem aí nessa
tremenda "gafe", que passei a amar com sofreguidão aquele que disse
assim:...."na pintura, vem sempre o momento em que o quadro não suporta
nem mais uma pincelada..." Saramago.
Desconfio, que sem "gafe", estou
querendo presentear o pintor com quem estive sexta feira, com este
livro. Pensando melhor....melhor?Não tem melhor que acuda pensamento. Parando de
pensar, me acudo. Para não postar "O Conto da Ilha Desconhecida"
(nossa, que história de amor mais linda!A última cena é o homem e a mulher
pintando um nome num barco) nos correios via SEDEX..O destinatário seria o
pintor, o desenhista que de mansinho, porém determinado, deixou Dona Ruth e a
entrevista para outra ocasião.
Com Ruth ou sem Ruth, estamos sempre
falando da mesma coisa.Mas "entrevista", faz uma falta....Entre nós
não foi possível haver "entrevista". Nós que tanto falamos sobre e
olhamos para o pescador de Taperoá que viria a ser a foto capa de um possível
livro de meu pai."Entrevista", no sentido usado pelo povo em Taperoá,
não foi possível.Taperoá, cidade onde morei entre as décadas de 50 e 60, tinha
uma cultura popular muito rica. A luta de classes ficava amortecida pela
predominância da pesca artesanal como atividade econômica.O povo podia se
apropriar de palavras de gente rica, se autorizando a usá-las do modo que lhe
aprouvesse.Muito enternecedor, o modo. Assim, aprendi com Conceição, a moça que
trabalhava na minha casa, que "dar entrevista" era conceder um
encontro amoroso."Fui entrevistada por fulano" significava "fui
abordada amorosamente por fulano".
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Eu, dez anos de idade, recém-chegada do interior.Na casa de tio Zezito, onde me
hospedo, se hospeda também um já rapaz, homem feito. Dezesseis anos. Lindo! Eu bem
recordo que ele tinha pêlo nas axilas.Eu também já tinha cá meus pêlos
apesar da idade.Eu bem recordo que ele tinha olhos castanho cor de mel. O que
melhor recordo é a sua voz máscula e mansa.Eu sou capaz de apostar que ele
canta bem. Eu, desde que vim ao mundo, fixada em palavras, ficava a repetir para
mim mesma o seu lindo nome, cônscia de que entre uma menina de 10 anos e
um rapaz de dezesseis, nada poderia haver além de pegar carona na radiola de
tio Zezito.
Sexta feira passada soube que foi meu pai
quem escolheu seu nome. Sexta feira passada soube que foi meu pai quem o
presenteou com os primeiros instrumentos de trabalho: régua, compasso (será
com c cedilha?), transferidor. Transfere dor.Ai, a sexta feira
passada....
Pegar carona na radiola de tio Zezito. Nós dois. Eu, pensando nele. Ele, não
pensando em mim. O giro do vinil me marejando os olhos. Eu, apesar da idade, já
chegada a uma dor de cotovelo, disfarçava.
1974.Eu, vinte e um anos, namorado
firme. Não me recordo da presença do meu parceiro de radiola no curto período de
doença de meu pai. Agora não preciso mais dizer que foi na sexta feira
passada.Fiquei sabendo que ele abriu mão de colar grau com solenidade, em cima
da hora, para vir a Salvador quando meu pai já estava se ultimando.
Um homem de 65 anos, com a mesma voz máscula e mansa daquele rapaz, cabelos
grisalhos, cavalheiro, me abre a porta do carro. Novamente cavalheiro me conduz
com a mão na minha cintura. Ainda mais cavalheiro, me presenteia com fotos
originais feitas por meu pai guardadas com esmero. Brindamos ao nosso
reencontro. Sorrimos. Compartilhamos a dor que sentimos com a perda de nossos
pais.Trocamos recordações usufruindo o privilégio de termos excelente
memória.Ele se mostra no computador elegantemente agasalhado no Central Park.Me
conta da sua amizade com Celso Furtado quando vinha de Paris.Falamos um para o
outro das nossas rotinas.
Será que ele se recorda da radiola de tio
Zezito? De repente, qual borboleta retrocedendo a lagarta, uma palavra escapa da
sua boca.Escapa, escape. Nos entreolhamos cúmplices e tristes.Ao nos despedirmos
prometemos nos falar por SKYPE. Escape. Uma palavra......"não suporta mais
uma pincelada".
"...Porque és o Avesso do Avesso do Avesso do Avesso" Foto de Joaquim Leal Gomes em São Paulo Autor: Joaquim Leal Gomes (in memoriam) |
Marcia Gomes.
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